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A irracionalidade do socialismo segundo Mises

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Foto: Egor Myznik/Unsplash

Em 1920, Ludwig von Mises publicou aquele que viria a ser o mais importante artigo de economia já escrito: “O cálculo econômico sob o socialismo“. Você pode lê-lo aqui.

O ensaio de Mises foi o primeiro a desafiar a teoria socialista, à época em voga ao redor do mundo. Nesta monografia que viria a se tornar o pilar central da Escola Austríaca de Economia, Mises demonstrou que o planejamento econômico centralizado é inerentemente irracional e, logo, impossível.

Por quê? Porque os planejadores centrais precisam de um sistema de preços para lhes mostrar quanto custa cada recurso escasso. E estes preços só podem surgir por meio da concorrência em uma sociedade em que haja propriedade privada e que permita a livre entrada de concorrentes. O socialismo não permite nenhum dos dois.

A histórica constatação de Mises

O ensaio de Mises chama a atenção não apenas pelo seu rigor, como também por sua honestidade intelectual. 

Em vez de intencionalmente enfraquecer o argumento do oponente para então criticá-lo — tática essa conhecida como a falácia lógica do “espantalho” —, Mises fez questão de apresentar o argumento a favor do socialismo em sua versão mais robusta e convincente possível, para então respondê-lo e apontar os erros.

Assim, quando Mises começou a destrinchar os problemas do socialismo, ele partiu do princípio, para o bem do debate, de que o comitê de planejamento central de um regime socialista era formado por seres não apenas totalmente bem intencionados, como também estes usufruíam todos os conhecimentos técnicos relevantes à sua disposição.

Embora seja humanamente impossível que um comitê central formado por burocratas consiga apreender todos os fatos existentes e dispersos ao longo de toda a economia do país, e absorvê-los em sua mente de modo a tomar decisões boas e racionais, Mises, mesmo levando em conta esta impossibilidade prática, pressupôs, pelo bem do debate, que o comitê central socialista seria formado por homens iluminados, oniscientes e perfeitamente capazes de apreender e reunir todo o conhecimento disperso na sociedade. 

E, ainda assim, afirmou Mises, esses planejadores socialistas estariam perdidos e tateando no escuro. 

Mesmo sendo detentores de todo o conhecimento existente na sociedade, os planejadores socialistas simplesmente não teriam como avaliar se os recursos escassos — recursos naturais, bens de capital e mão-de-obra — à sua disposição estariam sendo empregados da melhor maneira possível. 

Os planejadores socialistas não teriam como mensurar a eficiência econômica de seu plano para os recursos da sociedade.

Eis, resumidamente, o argumento de Mises:

1) Sob o socialismo, os meios de produção (fábricas, instalações industriais, máquinas, ferramentas e mão-de-obra) não possuem proprietários privados. Eles pertencem ao estado.

2) Se os meios de produção pertencem exclusivamente ao estado, não há um genuíno mercado entre eles.

3) Se não há um mercado entre eles, é impossível haver a formação de preços legítimos para esses meios de produção (o que inclui os salários da mão-de-obra).

4) Se não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo de custos. 

5) Sem cálculo de custos, não há cálculo de lucros e prejuízos, e consequentemente não há como direcionar o uso de meios de produção para atender às mais urgentes demandas dos consumidores da maneira menos dispendiosa possível.

6) Logo, sem preços e sem cálculo de custos, de lucros e de prejuízos, é impossível haver qualquer racionalidade econômica na alocação de recursos escassos, o que significa que uma economia planejada é, paradoxalmente, impossível de ser planejada.

Ou seja: dado que a própria essência do socialismo é a propriedade coletiva dos meios de produção e a ausência de livre concorrência; dado que tal arranjo não permite o surgimento de preços de mercado; e dado que sem preços não há o mecanismo de lucros e prejuízos, que é o que traz racionalidade para qualquer processo produtivo, o comitê de planejamento central não seria capaz nem de planejar nem de tomar qualquer tipo de decisão econômica racional.

Os planejadores centrais, se bem-sucedidos em centralizar a produção e a distruibuição, não teriam preços para guiar seu planejamento. Não saberiam quanto cada ativo, produto ou serviço custa. Logo, suas decisões necessariamente teriam de ser completamente arbitrárias e caóticas. 

Consequentemente, concluiu Mises, a existência de uma economia socialista planejada é literalmente “impossível”. E o socialismo é irracional. Trata-se de um ideal que não pode ser alcançado no mundo real. É inerentemente algo utópico, não tendo como funcionar em local nenhum do mundo.

A reação

Por um bom tempo, este ensaio de Mises se tornou o foco dos defensores do socialismo. Mas ninguém conseguiu refutá-lo. 

E então, com o passar dos anos, aqueles economistas que ainda defendiam algum planejamento centralizado de qualquer tipo simplesmente ignoraram o artigo ou diziam que ele já tinha sido refutado (sem mostrar como).

No entanto, a importância do ensaio de Mises foi reconhecida em meados da década de 1930 por um teórico socialista que lecionava na Universidade de Michigan: Oskar Lange.

Naquele que se tornou seu mais famoso ensaio, “On the Economic Theory of Socialism“, publicado em 1936, Lange começa suas considerações com esta esperta retórica:

Nós socialistas certamente temos bons motivos para sermos gratos ao Professor Mises, o grande advocatus diaboli [advogado do diabo] da nossa causa. Pois foi seu poderoso desafio que obrigou os socialistas a reconhecerem o problema de um inadequado sistema de contabilidade econômica para guiar a alocação de recursos em uma economia socialista.

Mais ainda: foi principalmente por causa do desafio do Professor Mises que muitos socialistas se tornaram cientes da própria existência deste problema. […]

Tanto como uma expressão de reconhecimento pelo grande serviço prestado por ele, e como lembrança da suprema importância de se ter uma sólida contabilidade econômica, uma estátua em homenagem ao Professor Mises deveria ser erguida em um honroso local no grande hall de entrada do Ministério da Socialização, ou no Comitê Central de Planejamento do estado socialista.

Lange argumentou que um comitê de planejamento central poderia estabelecer um sistema de produção econômica tão eficiente quanto um sistema econômico descentralizado guiado por preços competitivos. Os planejadores socialistas teriam apenas de atribuir preços arbitrários para todo e qualquer item oferecido pelo estado; ato contínuo, se houvesse ou uma escassez ou um excesso de estoques, então o comitê alteraria os preços. E assim sucessivamente, até se alcançar um equilíbrio.

A absurdidade prática deste argumento em um mundo de preços em contínua alteração, e com literalmente bilhões de bens serviços, deveria ser evidente para todos. Mas não foi evidente para nenhum economista acadêmico. O argumento de Lange continuou a ser citado me monografias defendendo o planejamento central até o colapso da União Soviética a 25 de dezembro de 1991.

A vasta maioria dos economistas acadêmicos se lembra de Mises — quando lembram — apenas nos termos desta supressão retórica de Lange.

O departamento de economia da Universidade de Chicago contratou Lange em 1943. Ele saiu do posto em 1945 quando o governo socialista da Polônia o nomeou para Embaixador nos Estados Unidos. Em 1946, ele se tornou o enviado da Polônia para as Nações Unidas. Em 1947, ele retornou à Polônia para assumir um cargo de economista no governo e, depois, como professor na Universidade de Varsóvia.

Em nenhum momento, algum governo socialista adotou seu hipotético programa de testar preços arbitrariamente atribuídos. Não obstante, economistas acadêmicos continuaram citando seu artigo de 1936 como sendo uma refutação do ensaio de Mises.

Durante 50 anos, poucos livros-textos de economia mencionavam Mises. E, quando o faziam, era apenas para dizer que ele havia sido totalmente refutado por Lange. Os acadêmicos do establishment simplesmente jogaram Mises no buraco orwelliano da memória.

Robert Heilbroner, um economista socialista e multimilionário em decorrência dos royalties de sua popular obre sobre a história da teoria econômica, The Worldly Philosophers, a qual vendeu mais de quatro milhões de cópias, afirmou em um artigo à revista The New Yorker, de setembro de 1990, intitulado “Após o Comunismo“, que ele havia crescido em um mundo acadêmico no qual ele e seus pares acreditavam que Lange havia refutado Mises. E então ele anunciou: “Mises estava certo“.

No entanto, não há nenhuma referência a Mises na sétima edição da obra The Worldly Philosophers, publicada em 1999, um silêncio que ele manteve nas seis edições anteriores, que começaram em 1953.

O acobertamento dos intelectuais

Todos os eventos ocorridos nos países que adotaram o socialismo demonstraram, de forma macabra, quão correta estava a constatação de Mises.

O fracasso universal do socialismo do século XX começou já nos primeiros meses após a tomada da Rússia por Lênin. A produção caiu acentuadamente. Ato contínuo, ele foi forçado a implementar uma reforma marginalmente capitalista em 1920, a Nova Política Econômica (NEP). Ela salvou o regime do colapso. A NEP foi abolida por Stalin.

Durante as décadas seguintes, Stalin se entregou ao corriqueiro hábito de assassinar pessoas. A estimativa mínima é de 20 milhões de mortos. 

O ponto de partida da chacina socialista foi a Ucrânia. Normalmente é dito que o número de ucranianos mortos na fome de 1932-33 foi de cinco milhões. Mas de acordo com o historiador Robert Conquest, se acrescentarmos outras catástrofes ocorridas com camponeses entre 1930 e 1937, incluindo-se aí um enorme número de deportações de supostos “kulaks”, o grande total é elevado para entorpecentes 14,5 milhões de mortes.

Tal prática era peremptoriamente negada por quase toda a intelligentsia do Ocidente. Foi somente em 1960 que o próprio Robert Conquest publicou seu monumental livro O Grande Terror — Os Expurgos de Stalin

Sua estimativa atual: algo em torno de 30 milhões. O livro foi escarnecido à época. O verbete da Wikipédia sobre o livro é bem acurado.

Publicado durante a Guerra do Vietnã e durante um surto de marxismo revolucionário nas universidades ocidentais e nos círculos intelectuais, O Grande Terror foi agraciado com uma recepção extremamente hostil.

A hostilidade direcionada a Conquest por causa de seus relatos sobre os expurgos foi intensificada por mais dois fatores. 

O primeiro foi que ele se recusou a aceitar a versão apresentada pelo líder soviético Nikita Khrushchev, e apoiada por vários esquerdistas do Ocidente, de que Stalin e seus expurgos foram apenas uma “aberração”, um desvio dos ideais da Revolução, e totalmente contrários aos princípios do leninismo. 

Conquest, por sua vez, argumentou que o stalinismo era uma “consequência natural” do sistema político totalitário criado por Lênin, embora reconhecesse que foram os traços característicos da personalidade de Stalin que haviam causado os horrores específicos do final da década de 1930.  

Sobre isso, Neal Ascherson observou: “Àquela altura, todos nós concordávamos que Stalin era um sujeito muito perverso e extremamente diabólico, mas ainda assim queríamos acreditar em Lênin; e Conquest disse que Lênin era tão mau quanto Stalin, e Stalin estava simplesmente levando adiante o programa de Lênin”.

O segundo fator foi a ácida crítica de Conquest aos intelectuais ocidentais, os quais ele dizia sofrerem de cegueira ideológica quanto às realidades da União Soviética tanto durante a década de 1930 quanto, em alguns casos, até mesmo ainda durante a década de 1960. 

Personalidades da intelectualidade e da cultura da esquerda, como Sidney e Beatrice Webb, George Bernard Shaw, Jean-Paul Sartre, Walter Duranty, Sir Bernard Pares, Harold Laski, D.N. Pritt, Theodore Dreiser e Romain Rolland foram acusados de estúpidos a serviço de Stalin e apologistas de seu regime totalitário devido a vários comentários que fizeram negando, desculpando ou justificando vários aspectos dos expurgos.

A esquerda ainda odeia o livro, e continua até hoje tentando dizer que ele exagerou nos números e nos relatos.

E então veio o Livro Negro do Comunismo (1999), que coloca em 85 milhões a estimativa mínima de cidadãos executados pelos comunistas, deixando claro que cifras como 100 milhões ou mais são as mais prováveis.  

O livro foi escrito por esquerdistas franceses e publicado pela Harvard University Press, de modo que ele não pôde simplesmente ser repudiado como sendo apenas mais um panfleto direitista.

Segundo o livro, entre 1949 e 1987, o comunismo da China, liderado por Mao Tsé-Tung e seus sucessores, assassinou ou de alguma maneira foi o responsável pela morte de 76 milhões de chineses. Há historiadores que dizem que o número total pode ser de 100 milhões ou mais. Somente durante o Grande Salto para Frente, de 1959 a 1961, o número de mortos varia entre 20 milhões e 75 milhões. No período anterior foi de 20 milhões. No período posterior, dezenas de milhões a mais.

No Camboja, o Khmer Vermelho, comandado por Pol Pot, exterminou aproximadamente 3 milhões de cambojanos, em uma população de 8 milhõesCrianças eram assassinadas com baionetas.

No total, segundo Conquest, os regimes socialistas assassinaram aproximadamente 110 milhões de pessoas de 1917 a 1987. Destas, quase 55 milhões de pessoas morreram em vários surtos de inanição e epidemias provocadas pelas políticas de planejamento econômico — dentre estas, mais de 10 milhões foram intencionalmente esfaimadas até a morte, e o resto morreu como consequência não-premeditada da coletivização e das políticas agrícolas marxistas.

A esquerda até hoje tenta ignorar tudo isso.

Com efeito, a resposta da academia tem sido a de considerar todo o experimento soviético como algo que foi meramente mal orientado, algo que se desencaminhou, e não como algo inerentemente diabólico. O custo em termos de vidas humanas raramente é mencionado. Antes de 1991, era algo ainda mais raramente mencionado.  

Antes de Arquipélago Gulag (1973), de Solzhenitsyn, era considerado uma imperdoável falta de etiqueta um acadêmico fazer mais do que apenas mencionar muito discretamente e só de passagem toda a carnificina, devendo limitar qualquer crítica apenas aos expurgos do Partido Comunista comandados por Stalin no final da década de 1930, e praticamente quase nunca mencionar que a fome em massa havia sido adotada como uma política pública. “Ucrânia?  Nunca ouvi falar.” “Kulaks? O que são kulaks?”

Há um livro sobre estas ingênuas e crédulas almas, que foram totalmente trapaceadas: Political Pilgrims: Travels of Western Intellectuals to the Soviet Union, China, and Cuba, 1928-1978 de Paul Hollander. Foi publicado pela Oxford University Press em 1981. Foi ignorado pela intelligentsia por uma década.

A falência intelectual e moral dos líderes intelectuais do Ocidente, algo que vinha sendo encoberto pela própria durabilidade do regime soviético, foi finalmente exposta em 1991, quando houve o reconhecimento mundial de que os regimes marxistas não apenas haviam falido economicamente, como também eram tiranias que o Ocidente havia aceitado como sendo uma alternativa válida para o capitalismo.

Não há exemplo melhor deste auto-engano intelectual do que o de Paul Samuelson, professor de economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o primeiro americano a ganhar o Prêmio Nobel de economia (1970), ex-colunista da revista Newsweek, e autor daquele que é, de longe, o mais influente livro-texto de economia do mundo pós-guerra (1948 — presente): pelo menos 3 milhões de cópias vendidas em 31 idiomas distintos.  

Ele escreveu na edição de 1989 de seu livro-texto: “A economia soviética é a prova cabal de que, contrariamente àquilo em que muitos céticos haviam prematuramente acreditado, uma economia planificada socialista pode não apenas funcionar, como também prosperar.”

Mises previu tudo

Tudo o que ocorreu seis décadas após a publicação do ensaio de Mises comprovou a acurácia de sua tese. Regimes construídos sobre bases irracionais se degeneram em ações irracionais.

Em 1979, a China comunista abandonou o planejamento centralizado no setor agrícola. Deng Xiaoping removeu os controles estatais sobre a agricultura na China. Essa liberalização levou ao maior e mais longo período de crescimento econômico, na maior área terrestre do planeta, em toda a história da humanidade.

Em seguida, ao fim da década de 1980, a economia da União Soviética começou a implodir. No dia 25 de dezembro de 1991, Mikhail Gorbachev formalmente dissolveu a URSS. Sem nenhum derramamento de sangue, os líderes da URSS simplesmente abandonaram este esquema. A bandeira vermelha sobre o Kremlin foi abaixada pela última vez. O experimento genocida havia terminado.

https://www.youtube.com/watch?v=njXaEZi9gDo

Esses dois acontecimentos apenas comprovaram a teoria de Mises, de 1920. O socialismo é realmente irracional.

Dado que o socialismo é inerentemente irracional, ele não tem como produzir crescimento econômico semelhante ao das economias de livre mercado. Este contraste pode ser visto nesta foto de satélite das duas Coreias. Desconheço uma imagem visual que melhor valide a teoria de Mises.

Para concluir

As leis da economia têm de ser respeitadas. Mises entendeu isso. Seus críticos não. A análise de Mises feita em 1920, apenas três anos após a Revolução de Outubro, se comprovou acurada tanto para a China quanto para a URSS.

Em seu posfácio à edição de 1990 do ensaio de Mises, Joseph Salerno apresentou a seguinte avaliação:

A importância deste ensaio de Mises, de 1920, se estende para muito além de sua devastadora demonstração sobre a impossibilidade de uma economia e de uma sociedade socialista. 

O ensaio apresenta a mais completa justificativa da importância de se ter preços livres, livre concorrência, propriedade privada protegida contra todo e qualquer tipo de ataque, e uma moeda sólida.

Sua tese continuará relevante enquanto economistas e políticos quiserem entender por que até mesmo pequenas intervenções estatais na economia consistentemente fracassam em seu intuito de alcançar resultados socialmente benéficos. 

“O cálculo econômico sob o socialismo” certamente figura entre os mais importantes artigos econômicos escritos neste século.

Eu acrescentaria isto: em qualquer século.

Fonte: Instituto Ludwig von Mises – Brasil

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