Início Publicações Artigos A tirania, enquanto ela vigora, não é reconhecida por suas vítimas

A tirania, enquanto ela vigora, não é reconhecida por suas vítimas

0
Foto: Syaibatul Hamdi/Pixabay

Como uma tirania surge? Como ela sobrevive?

Uma resposta ingênua seria: pessoas diabólicas, de alguma maneira, capturam as alavancas do poder enquanto o povo está inocentemente cuidando de suas vidas. Com sorrisos sinistros e girando as pontas de seus bigodes de maneira sinistra, os tiranos violenta e unilateralmente impõem suas vontades criminosas sobre a população.

O povo rapidamente percebe que seus ditadores são venais e vis, mas pouco pode fazer a não ser se submeter silenciosamente. Já está escravizado. Sua única esperança de emancipação é a intervenção de um super-herói – um carismático corajoso para liderar uma revolução, ou um nobre governo estrangeiro enviando seus militares para protegê-los dos malfeitores.

Como dito, essa resposta é “ingênua”, e certamente é. Mesmo assim, essa resposta reflete a atitude de muitos adultos. De acordo com essa atitude, a tirania é flagrante, pura e óbvia para todos (quase como num desenho animado); e, portanto, nunca é aceita voluntariamente. A tirania é um mal puro que é impiedosamente imposto sobre as massas desafortunadas.

Em nossas mentes, cidadãos esclarecidos que somos das democracias do século XXI, a tirania é o Reino do Terror na França revolucionária. São os nazistas e fascistas de 80 anos atrás. São Stalin, Mao e Saddam Hussein. São Vladimir Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un e o Talibã de hoje.

Para aqueles de nós que vivenciamos eleições reais e regulares, a tirania parece estar confinada a tais regimes – regimes distantes no tempo ou espaço e, portanto, culturalmente distantes de nós.

Tiranos sempre são convincentes

Esses regimes passados e distantes são de fato tirânicos. No entanto, a atitude popular em relação a eles é perigosamente imatura. Todo tirano sempre consegue convencer um grande número de pessoas sob seu comando de que está utilizando a força exclusivamente para o bem maior. Os aspirantes a tiranos que não conseguem convencer o povo de seus propósitos nobres nunca conseguem o poder que anseiam. Muito poucas pessoas se submetem.

Todo e qualquer tirano verdadeiro sempre aponta para algum problema – talvez real ou talvez inventado, mas infalivelmente exagerado – cuja persistência infligirá ao seu amado povo um dano sem precedentes. Com sua cuidadosamente ensaiada pose de visionário corajoso e caridoso, ele convence o povo a obedecê-lo, demonstrando jamais ter receio de usar todos os poderes de que precisa para salvar seu povo dos terríveis perigos à espreita. E ele insiste que seu exercício de poder deve ser amplo e ousado, livre de sutilezas legais ou éticas que apenas o impediriam de salvar seu rebanho.

Tremendo de medo desses terríveis perigos descritos por seu senhor, e esperançoso pela salvação prometida, o povo se submete. Como ovelhas.

Muitas pessoas, é claro, reconhecem e até se irritam com a arbitrariedade do tirano e a dureza de seus ditames. Porém, acreditando que esses ditames são necessários para um bem maior, a maioria obedece humildemente. Há alguma reclamação, mas, no final, a dócil submissão prevalece. “O resultado final amanhã valerá a pena a dor, o sofrimento e a indignidade de hoje. Não temos escolha a não ser obedecer ao nosso líder”, pensam eles.

E é assim que a verdadeira tirania surge e sobrevive. Ela surge e sobrevive sempre com a aceitação – e muitas vezes também com a aprovação entusiástica – de um grande número de suas vítimas. Essas vítimas, portanto, não sentem que estão vivendo sob uma tirania. Tirania é o que acontece com outras pessoas; pessoas menos iluminadas ou muito menos afortunadas do que nós; pessoas cujos opressores, ao contrário de nossos próprios líderes amorosos e preocupados, discursam louca e caricaturalmente em línguas estranhas, muitas vezes vestidos em trajes militares.

A tirania, acredita-se, não acontece conosco, pois não se se trata de uma tirania se o objetivo declarado é a nossa salvação; não é tirania aquilo que promete nos proteger de perigos que temos certeza de que são reais, grandes e iminentes. 

E aquelas poucas aberrações ideológicas que imprudentemente insistem em chamar nossos salvadores de “tiranos” não reconhecem e não apreciam a necessidade de uma ação rápida e decisiva imposta de cima para baixo. Essas aberrações deveriam ser ignoradas e talvez até mesmo silenciadas à força.

Tirania, vale insistir, não acontece conosco. Afinal, estamos cumprindo voluntariamente as ordens de nossos líderes, sabendo que são para o nosso próprio bem. Se estivéssemos sofrendo a opressão de tiranos, resistiríamos. Somos, não se esqueça, um povo orgulhoso. Somos iluminados, democráticos e livres. Consequentemente, dado que a grande maioria de nós não está resistindo às ordens de nossos líderes, eles, por definido, não podem ser tirânicos. C.Q.D.

Nossos líderes, em suma, não são tiranos. Eles são servidores públicos em quem devemos confiar se quisermos ser salvos.

E assim concluem todos os tiranizados.

Socialismo Sanitário é tirania

Dado que a tirania sempre conta com o amplo apoio de suas vítimas, a maioria das pessoas que vive sob ela não tem conhecimento do terrível destino que as aguarda. 

E assim é com a tirania do socialismo sanitário de hoje.

Acreditando que as ordens de lockdown, os decretos sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras e o fechamento de escolas são necessários para evitar perdas incalculáveis de vidas, as pessoas obedecem. Este não é o momento para permitir que picuinhas sobre liberdades individuais, sobre estado de direito, ou sobre preocupações com outros assuntos que não a Covid obstruam o valente e louvável esforço de nossos líderes para nos salvar.

A proibição de tudo que as pessoas valorizam, a criminalização da interação social, o individualismo efetivamente obscurecido pelo uso obrigatório de máscaras, a censura diligente de todos aqueles que se atrevem a discordar, e a sociedade completamente disforme em sua rotina diária são meros incômodos passageiros que não devem jamais ser questionados. Nossos líderes sabem o que fazem.

Comunicação e agregação são exatamente as atitudes que o estado mais teme. Mas tais medidas — que representam o próprio funcionamento de uma sociedade livre — terem sido proibidas por nossos líderes mostra apenas o quanto eles se preocupam em demasia com nossa saúde.

E o fato de estes mesmos líderes nos estimularem a olharmos com um misto de suspeita e ódio a qualquer semelhante que não esteja com a face oculta sob um pano é apenas um ensinamento dolorosamente necessário que está sendo imposto visando ao próprio bem da civilização.

A esperança

No entanto, como acontece com toda tirania, a verdade acabará por emergir. No futuro, os olhos das pessoas se abrirão para os exageros, para as meias-verdades, para as distorções e para as mentiras descaradas usadas para defender as restrições tirânicas de hoje. 

Algum dia, no futuro, as pessoas olharão para 2020 e verão como um ano em que a tirania escureceu o globo.

Nossos filhos e netos balançarão a cabeça espantados com o fato de os adultos – os “adultos” – de 2020 terem sido tão crédulos ao ponto de acreditar piamente nos exageros histéricos e nos enganos e duplicidades utilizados para justificar essa tirania. Eles ficarão estupefatos com o fato de que, em 2020, tantos jornalistas, especialistas e políticos engoliram sem questionar todas as previsões exageradas (e erradas) de cientistas loucos como Neil Ferguson e seus colegas do Imperial College.

As mandíbulas de nossa progênie cairão de perplexidade quando ponderarem sobre as “reportagens” bizarramente atrozes e tendenciosas da mídia sobre a Covid-19. E nossos descendentes simplesmente se conformarão com a impossibilidade de entenderem plenamente como e por que nos permitimos ser engolfados por tal tirania.

E então nossos filhos e netos darão risadas, imbuídos da confiança de saber que nunca serão tão ingenuamente crédulos como fomos nós em 2020.


Donald Boudreaux foi presidente da Foudation for Economic Education, leciona economia na George Mason University e é o autor do livro Hypocrites and Half-Wits.

Fonte: Mises Brasil

Sair da versão mobile