Início Vida A virtude da amizade em tempos líquidos

A virtude da amizade em tempos líquidos

A amizade que superou barreiras: lições de virtude em uma era de conexões efêmeras

0

Era uma tarde de outubro de 1989 quando Günter Schabowski, porta-voz do Partido Socialista Unificado da Alemanha Oriental, cometeu o que seria conhecido como “o erro mais bem-sucedido da história”. Em uma coletiva de imprensa confusa, ele anunciou prematuramente que as restrições de viagem entre Berlim Oriental e Ocidental seriam suspensas “imediatamente”. Naquela noite, milhares de pessoas se reuniram no Muro de Berlim, e algo extraordinário aconteceu: guardas e civis, antes separados por uma barreira física e ideológica, começaram a se reconhecer como seres humanos.

O Muro de Berlim foi construído em 1961 pela República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) para impedir a fuga de cidadãos para a Alemanha Ocidental. Durante quase três décadas, o muro dividiu famílias, amigos e um país inteiro. Simbolizando a Guerra Fria, a barreira física era também uma representação da divisão ideológica entre o comunismo e o capitalismo.

A queda do muro foi precipitada em parte por mudanças políticas na União Soviética e pressões populares dentro dos estados socialistas. A União Soviética, sob o governo de Mikhail Gorbachev, estava implementando reformas, e o desejo de liberdade e reunificação crescia dentro da própria Alemanha Oriental.

Entre esses milhares de berlinenses estava Hans Weber, um jovem guarda da Alemanha Oriental que, naquela noite histórica, reencontrou seu amigo de infância, Klaus Schmidt. Os dois haviam crescido juntos em Berlim, brincando nas mesmas ruas, até que o muro literalmente os separou em 1961. Hans tinha apenas 12 anos quando viu seu melhor amigo pela última vez.

“Naquela noite de novembro, eu estava de plantão no posto de controle”, relembra Hans em seu diário, hoje exposto no Museu do Muro de Berlim. “Quando vi Klaus do outro lado da multidão, depois de 28 anos, foi como se o tempo não tivesse passado. Nossos olhos se encontraram e, naquele momento, eu não era mais um guarda, ele não era mais um ‘ocidental’ – éramos apenas Hans e Klaus, os mesmos garotos que sonhavam em jogar futebol profissionalmente.”

Esta história real exemplifica o que Aristóteles, há mais de dois mil anos, identificou como a mais nobre forma de amizade: aquela baseada na virtude. Para o filósofo grego, existiam três tipos de amizade – por prazer, por utilidade e por virtude. A amizade entre Hans e Klaus transcendia as duas primeiras categorias. Não era uma amizade mantida por diversão ou benefício mútuo, mas uma conexão que sobreviveu a décadas de separação física e ideológica.

O contraste com a modernidade líquida

Hoje, mais de três décadas após a queda do Muro de Berlim, enfrentamos um novo tipo de muro: a superficialidade das relações na era digital. Zygmunt Bauman, em sua análise da “modernidade líquida”, nos alerta sobre como nossas conexões se tornaram cada vez mais fluidas, instantâneas e, paradoxalmente, mais frágeis.

“Nos acostumamos às conexões instantâneas via redes sociais”, reflete Klaus, agora aos 74 anos, “me pergunto se amizades como a minha e de Hans ainda são possíveis. Mantivemos nossa amizade viva por 28 anos sem nenhum contato, apenas com a força das memórias e valores compartilhados. Hoje, as pessoas ‘desamigam’ umas às outras por discordâncias em redes sociais.”

Cícero, o grande pensador romano, parecia antecipar essa discussão quando escreveu que “a amizade só pode existir entre pessoas boas”. Para ele, a verdadeira amizade era um vínculo sólido, baseado em virtude e caráter moral, não em circunstâncias passageiras – um conceito que contrasta fortemente com o que Bauman descreve como “conexões líquidas” de nossa era.

A resistência do vínculo verdadeiro

O reencontro de Hans e Klaus exemplifica o que Bauman chamaria de “relação sólida” em um mundo cada vez mais líquido. “Klaus tinha se tornado médico no Oeste, enquanto eu seguia carreira militar no Leste”, escreveu Hans. “Mas quando começamos a conversar naquela noite, era como se o muro nunca tivesse existido. Ainda compartilhávamos o mesmo senso de humor, os mesmos valores, a mesma humanidade.”

A amizade é uma alma com dois corpos

Aristóteles

Nos acostumamos com que pessoas colecionem “amigos” como troféus virtuais e descartam relacionamentos com a mesma facilidade com que deletam aplicativos. Quanto mais seguidores, melhor. Quanto mais curtidas, mais engajamento. Mas será que podemos considerar isso uma forma de amizade? Hans e Klaus nos mostram o valor das amizades construídas em bases mais profundas do que interesses temporários, revelando um tipo de vínculo moral caracterizado pela profundidade dos laços. Esse tipo de amizade não se define apenas pela convivência, mas pela disposição de ser para o outro, transcendendo tanto o tempo quanto a distância física.

Construindo pontes em um mundo líquido

Nos anos seguintes à reunificação, Hans e Klaus trabalharam juntos em um projeto de reconciliação entre jovens das duas Alemanhas. Hoje, seu trabalho ganhou uma nova dimensão: ajudar jovens a construir conexões significativas em um mundo dominado pela superficialidade digital.

“Vemos jovens com centenas de amigos nas redes sociais, mas poucos com quem podem contar realmente”, observa Hans. “É como se tivéssemos trocado o Muro de Berlim por milhares de pequenos muros digitais que nos separam uns dos outros”. Existe uma crença de que se você não está no mundo digital, você não existe. A relação dos dois amigos nos mostra que não é bem assim.

Tais muros, como observa Bauman, surgidos da tecnologia, muitas vezes acabam nos isolando em bolhas de conveniência e conforto superficial. Aristóteles certamente reconheceria nisso uma predominância das amizades por prazer e utilidade, em detrimento daquelas baseadas em virtude.

O desafio contemporâneo

Bauman descreve como vivemos em um mundo cada vez mais líquido, onde relacionamentos são consumidos como produtos e descartados quando não mais convenientes. Por isso nosso movimento deve ser o de buscar o resgate do valor da amizade verdadeira, aquela que Cícero descreveu como “o bem mais precioso depois da sabedoria”.

“O muro físico caiu em uma noite”, reflete Klaus, “mas os muros invisíveis que construímos hoje através de nossas telas e algoritmos podem ser ainda mais difíceis de derrubar. A verdadeira amizade exige coragem para ser vulnerável, paciência para cultivar conexões profundas e sabedoria para valorizar o que é duradouro em meio ao efêmero.”

Talvez seja este o maior desafio atual: encontrar o equilíbrio entre as facilidades da conectividade e a profundidade das amizades verdadeiras que Aristóteles e Cícero tanto valorizavam. Como Hans e Klaus nos mostram, é possível construir e manter vínculos sólidos mesmo em tempos difíceis – basta termos a coragem de ir além da superficialidade e buscar conexões baseadas em nossas virtudes, com valores compartilhados.

Para saber mais

Aristóteles

  1. “Ética a Nicômaco” (Livros VIII e IX)
    • Edição brasileira: São Paulo: Edipro, 2014. Tradução de Marco Zingano. Contém a análise mais completa de Aristóteles sobre os três tipos de amizade. Os livros VIII e IX são inteiramente dedicados ao tema da amizade (philia)
  2. “Ética a Eudemo” (Livros VII)
    • Edição brasileira: São Paulo: Edipro, 2015. Tradução de Edson Bini. Apresenta reflexões complementares sobre amizade. Oferece perspectivas adicionais sobre a natureza das relações humanas.

Cícero

  1. “Da Amizade” (De Amicitia)
    • Edição brasileira: São Paulo: Martins Fontes, 2012. Tradução de João Teodoro d’Olim Marote. Escrito em 44 a.C., após a morte de seu amigo Cipião Apresenta uma visão romana da amizade como virtude política e moral

Zygmunt Bauman

  1. “Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos”
    • Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Analisa as relações interpessoais na modernidade líquida. Discute a transformação das relações humanas na era digital.
  2. “Modernidade Líquida”
    • Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Estabelece o conceito fundamental de liquidez nas relações contemporâneas. Base teórica para compreender a fragilidade dos vínculos modernos.

Jorge Quintão – IoP

Sair da versão mobile