Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.), jurista, político, escritor, orador e filósofo da República Romana, é uma figura central tanto na história do pensamento ocidental quanto na construção dos ideais republicanos que perduram até hoje. Eleito cônsul em 63 a.C., Cícero defendia a primazia dos padrões morais sobre as leis do governo e acreditava que, quando o governo se torna opressor, as pessoas têm o direito de se rebelar.
O conceito de república, essencial para as reflexões de Cícero, nasceu na Roma Antiga por volta de 509 a.C., quando o último rei romano foi deposto e o poder passou a ser exercido por representantes eleitos. Esta mudança marcou a transição de um regime monárquico para uma forma de governo onde o poder era dividido e as decisões eram tomadas em nome do bem comum. A res publica (coisa pública) passou a ser vista como o interesse de todos, e não de um único governante.
Cícero, nascido em uma rica família de ordem equestre, ocupou cargos importantes, como o de cônsul em 63 a.C. Durante sua vida, ele introduziu os romanos às principais escolas de filosofia grega e criou um vocabulário filosófico em latim que ressoa até hoje na linguagem jurídica e política. Termos como evidentia, humanitas, qualitas, quantitas e essentia são exemplos de sua contribuição linguística.
A obra “Da República”, disponível em nosso repositório de obras clássicas, elaborada ao estilo dos diálogos platônicos, reflete sobre a res publica e propõe que o interesse particular deve estar subordinado ao bem comum. Para Cícero, a república ideal não é simplesmente o governo popular, mas um sistema constitucional em que governantes e governados estão sujeitos às mesmas leis. Essa visão prefigura o conceito de Estado de Direito, essencial para a prosperidade de uma nação.
Um dos diálogos mais memoráveis da obra destaca a importância da democracia, onde membros do Senado romano afirmam que, quando o povo preserva suas prerrogativas, ele se torna o árbitro das leis, da paz, da guerra e do destino de todos. Isso reflete a noção de soberania popular, vital para as democracias modernas.
Neste sentido, a influência de Cícero transcendeu seu tempo. No Renascimento, a redescoberta de suas cartas por Petrarca ajudou a ressuscitar o humanismo e a cultura romana clássica. No século XVIII, durante o Iluminismo, pensadores como John Locke, David Hume e Montesquieu se inspiraram em suas ideias, que também ecoaram nos escritos dos pais fundadores dos Estados Unidos. Thomas Jefferson, ao redigir a Declaração de Independência, baseou-se no conceito ciceroniano de “direito público”.
Cícero também advertiu sobre os perigos do poder excessivo e descontrolado do governo, alertando que ele pode se tornar violento, usurário e tirânico. Sua visão de liberdade — o direito de viver como se deseja, dentro dos limites da justiça — é uma lembrança de que a vigilância constante é necessária para evitar que a liberdade se transforme em escravidão.
Para Cícero, o verdadeiro papel do governo é proteger a vida e a propriedade dos cidadãos. Quando o governo falha nessa função, a sociedade está moralmente autorizada a resistir. Esta filosofia de resistência à tirania foi fundamental para moldar as ideias de liberdade que ainda ressoam em nossos dias, onde muitas vezes vemos governos se afastarem do bem comum para atender a interesses particulares.
“Quando um governo se torna poderoso, é destrutivo, extravagante e violento; é um usurário que pega o pão de bocas inocentes e priva os homens honrados de sua substância, por votos com os quais se perpetuam.”
Marco Túlio Cícero
Estamos assistindo a democracias enfrentarem crises de legitimidade, polarização e desafios à justiça. As ideias de Cícero soam como um alerta de que justiça verdadeira transcende as leis humanas e que um cidadão virtuoso deve seguir os princípios da justiça eterna, independentemente das mudanças legais ou sociais. Em uma era marcada por desinformação e interesses particulares sobrepostos ao bem comum, a mensagem de Cícero é uma lição de ética e cidadania.
As lições de Cícero sobre a necessidade de governantes justos, cidadãos virtuosos e a primazia do bem comum são mais atuais do que nunca. Em tempos de incerteza, “Da República” nos convida a refletir sobre como podemos contribuir para a construção de uma sociedade mais equilibrada e fiel aos valores que a deveriam sustentar.
Se Marco Túlio Cícero estivesse vivo hoje, veria com inquietação muitas das chamadas “democracias” que, na realidade, se aproximam de tiranias, com líderes que manipulam leis e instituições para se perpetuar no poder. Governantes que colocam seus interesses acima da justiça e da igualdade seriam, para ele, a antítese do que uma verdadeira república deveria ser. Ele criticaria duramente a concentração de poder e a forma como essas “democracias” distorcem os princípios básicos da res publica.
Possivelmente Cícero também alertaria sobre os perigos da apatia cívica e do ativismo judicial, que permitem que regimes autoritários se consolidem. Para ele, a liberdade e a justiça só podem ser preservadas por cidadãos vigilantes e engajados. A falta de participação ativa do povo seria vista como uma porta aberta para a tirania. Em suas palavras, ele nos lembraria que a verdadeira liberdade é frágil e, quando negligenciada, rapidamente se transforma em servidão.
Para saber mais
Cícero, Marco Túlio. “Da República.”
Traduções e edições comentadas desta obra fundamental oferecem um mergulho profundo nas ideias políticas e filosóficas de Cícero. Recomendo a edição da Penguin Clássicos, que traz uma introdução abrangente e notas explicativas.
Grant, Michael. “Cícero: A Vida e os Tempos do Orador Romano.”
Biografia detalhada que explora não apenas a vida política de Cícero, mas também sua influência duradoura na literatura e filosofia ocidentais.
Everitt, Anthony. “Cicero: The Life and Times of Rome’s Greatest Politician.”
Este livro acessível traça um retrato vívido de Cícero e o contexto tumultuado da Roma Republicana, ideal para quem busca uma leitura envolvente e informativa.
Nicolet, Claude. “O Mundo de Cícero.”
Um estudo aprofundado sobre o papel de Cícero no desenvolvimento das ideias políticas e filosóficas da Roma Antiga, contextualizando suas obras dentro das complexas dinâmicas da época.
Montesquieu, Charles de Secondat. “O Espírito das Leis.”
Embora não seja uma obra diretamente sobre Cícero, este clássico da filosofia política foi influenciado pelas ideias romanas de separação de poderes e constitucionalismo, temas centrais em “Da República.”
Rawson, Elizabeth. “Cicero: A Portrait.”
Um estudo acadêmico que examina a vida e o legado de Cícero, oferecendo uma análise crítica das suas obras e do impacto duradouro no pensamento político.
Político Romano: “O Direito Romano e a Formação do Estado Moderno.”
Livro que explora a influência do Direito Romano, incluindo as ideias de Cícero, na formação dos sistemas jurídicos modernos, com destaque para o Brasil.
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