Stanley Milgram, psicólogo social da Universidade de Yale, realizou um dos estudos mais controversos e influentes da psicologia no século XX. Seu experimento, conduzido na década de 1960, tinha como objetivo investigar a obediência à autoridade e até que ponto as pessoas estariam dispostas a seguir ordens que contradiziam seus princípios morais.
O contexto do estudo era simples, mas o impacto de suas descobertas foi profundo. Milgram recrutou voluntários para participar de um experimento sobre “memória e aprendizado”, no qual foram instruídos a aplicar choques elétricos em outro participante sempre que este cometesse um erro em uma tarefa de memorização. O que os voluntários não sabiam era que o “aprendiz” era um ator e que os choques não eram reais. O verdadeiro objetivo do experimento era observar até onde os participantes iriam na aplicação dos choques, sob a direção de uma figura de autoridade.
Os resultados foram chocantes. A grande maioria dos participantes, mesmo demonstrando desconforto e hesitação, continuou a aplicar choques de intensidade crescente, simplesmente porque foram instruídos a fazê-lo por uma autoridade. Milgram concluiu que a obediência à autoridade pode levar pessoas comuns a cometerem atos terríveis, sugerindo que, sob certas circunstâncias, qualquer pessoa pode se tornar um agente de crueldade.
A relevância do estudo de Milgram é amplificada quando consideramos o contexto histórico em que foi conduzido. O experimento foi inspirado pelas atrocidades cometidas durante o regime nazista, quando muitos perpetradores de crimes de guerra alegaram estar “apenas cumprindo ordens”. A pesquisa de Milgram forneceu uma base psicológica para entender como indivíduos aparentemente normais podem ser conduzidos a realizar ações moralmente reprováveis.
As implicações sociais desse estudo são vastas e perturbadoras. Ele revela uma tendência humana de abdicar da responsabilidade moral em favor da conformidade com a autoridade, um comportamento que pode ter consequências devastadoras em contextos como guerras, genocídios, e mesmo no cotidiano, em situações de bullying ou assédio. A desumanização, facilitada pela obediência cega, é um fenômeno que Milgram desnudou em seu experimento, e que continua a ser um alerta para a sociedade.
Os resultados também lançam questões éticas sobre o poder das instituições e das figuras de autoridade na modelagem do comportamento humano. Desafiam a crença de que só os indivíduos com tendências sádicas ou psicopáticas podem cometer atos cruéis, sugerindo que, sob as condições corretas, qualquer pessoa pode ser levada a agir contra seus princípios morais mais básicos.
Haffner e a desumanização de judeus
Sebastian Haffner, um renomado jornalista e historiador alemão, também mergulhou profundamente na investigação das origens do mal, especialmente no contexto da ascensão do nazismo. Em suas obras, Haffner analisou como o regime de Hitler conseguiu manipular a sociedade alemã e transformar cidadãos comuns em cúmplices de atrocidades. Ele explorou como, após a Primeira Guerra Mundial, muitos alemães, desiludidos e em busca de estabilidade, foram atraídos pelas promessas de grandeza nacional feitas pelos nazistas.
Haffner destacou que essa busca por estabilidade e sentido após o trauma da guerra contribuiu para uma aceitação silenciosa do totalitarismo. A promessa de um renascimento nacional e a instabilidade social ajudaram a criar um ambiente em que a conformidade social e o medo predominavam. Esse contexto facilitou a desumanização das vítimas e levou muitos a apoiarem tacitamente um regime que cometeu crimes horrendos.
Sua análise revela como a combinação de desilusão, a promessa de estabilidade e o medo pode ser usada para manipular a opinião pública e consolidar o poder de regimes autoritários. A conformidade social, aliada ao medo e à falta de significado, desempenha um papel crucial na facilitação do domínio do mal, como demonstrado pela ascensão do nazismo e a transformação de uma sociedade aparentemente normal em cúmplices de atrocidades.
Arendt e as origens do totalitarismo
Hannah Arendt, a conhecida filósofa e teórica política, também abordou a questão das origens do mal em suas obras, especialmente em “As Origens do Totalitarismo” e “Eichmann em Jerusalém”. Arendt explicou como os regimes totalitários, neste caso o nazismo e o estalinismo, conseguiram estabelecer-se e perpetuar-se.
Um dos conceitos centrais de Arendt é a “banalidade do mal”, que ela desenvolveu ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela logística do Holocausto. Ao tentar escrever o relatório sobre o julgamento de Eichmann, Arendt presumiu que Eichmann não era um fanático ou psicopata malvado. Pelo contrário, ele era um burocrata banal e medíocre que, através do seu cumprimento do sistema de ordens, degenerou num agente de atrocidades.
Arendt destacou como a desumanização dos indivíduos e a obediência cega às autoridades podem levar a atrocidades em larga escala. Ela analisou como o totalitarismo explora a conformidade e o pensamento unidimensional para eliminar a responsabilidade moral e ética, transformando ações cruéis em deveres administrativos e, assim, facilitando o mal em grande escala.
Sua análise também focou em como regimes totalitários manipulam ideologias para justificar suas ações e mobilizar apoio, transformando a violência em uma ferramenta para a construção de uma utopia ideológica. Arendt, assim, contribuiu significativamente para a compreensão das dinâmicas que permitem o surgimento e a perpetuação do mal em contextos totalitários, oferecendo uma perspectiva sobre como a normalização de práticas brutais pode ocorrer por meio da conformidade e da desumanização.
Obediência, conformidade e imoralidade juntas
Os estudos de Sebastian Haffner, Hannah Arendt e Stanley Milgram nos dão variados pontos de vista sobre o mesmo tema de como a modernidade e o desejo de controle pelo governante e pelo establishment forjam o procedimento humano e a moralidade. Haffner analisou a ascensão do nazismo e como o vazio existencial e a busca por estabilidade permitiram que a manipulação ideológica transformasse cidadãos comuns em cúmplices silenciosos das atrocidades do regime, mesmo sabendo que suas ações são moralmente questionáveis.
Esses estudos se conectam ao refletir sobre a modernidade e o desejo de controle das instituições sobre o comportamento individual. Haffner e Arendt exploraram como regimes totalitários e ideologias manipuladoras podem criar um ambiente onde a responsabilidade moral é diluída e as ações cruéis são justificadas por um desejo de controle e poder. Milgram, ao mostrar como a obediência a uma autoridade pode levar à prática de atos moralmente questionáveis, revela como essa dinâmica de controle se manifesta em contextos mais sutis, como experimentos sociais, e como a confiança nas instituições e na autoridade pode minar a responsabilidade pessoal.
Tais estudos ilustram como a fragilidade moral da modernidade, com suas estruturas de poder e controle, pode enfraquecer o senso crítico e a responsabilidade individual, levando a uma conformidade que permite a perpetuação de práticas prejudiciais e injustas. A interseção desses insights nos convida a questionar o papel das instituições e das figuras de autoridade em moldar nosso comportamento e a refletir sobre a importância de manter um senso de responsabilidade pessoal e ética frente à pressão e ao controle social.
Para saber mais
Haffner, Sebastian. A Revolução de 1918-1919 na Alemanha. Companhia das Letras, 2004. Livro que explora a ascensão do nazismo e a manipulação ideológica que transformou a sociedade alemã.
Arendt, Hannah. A Banalidade do Mal: O Relato sobre o Julgamento de Adolf Eichmann. Editora Perspectiva, 2004. Análise do julgamento de Eichmann e a ideia de “banalidade do mal”, que investiga como a obediência e a conformidade podem levar a atos cruéis.
Milgram, Stanley. Obedience to Authority: An Experimental View. Harper & Row, 1974. Relato detalhado do experimento de obediência e suas implicações sobre como indivíduos podem agir contra sua moralidade sob a influência de uma autoridade.
Giddens, Anthony. Modernidade e Identidade: A Busca por Identidade no Mundo Moderno. Editora UNESP, 1991. Examina como a modernidade afeta a percepção de identidade e a adaptação a novos padrões sociais e éticos.
SciELO. “Stanley Milgram e o Experimento da Obediência: Uma Revisão Crítica”. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/PWkPLyXbvd7TTYHq5MqNg8c/. Artigo de referência sobre o trabalho de Milgram e a crítica aos seus métodos e implicações.
Fonte: Pesquisa Jorge Quintão – IoP