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Toda loucura começa com a despersonalização

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Foto: Salvatore Ventura/Unsplash

Um dos principais métodos dirigicionistas de comportamento, sobretudo quando o objetivo final é a manipulação de determinada sociedade, é atacar duramente a personalidade do indivíduo, a fim de arruiná-la.

Em outras palavras, para tornar o homem menos humano, e mais distante de si mesmo e do outro, é medida muito eficiente incentivar a sua despersonalização, levando-o a identificar-se apenas em manada, até que se esqueça, ou até mesmo rejeite, suas características únicas e pessoais, e ignore, por completo, que cada um de nós é irrepetível e portador de um mistério profundo e inabarcável.

Não foi por acaso que uma das maiores loucuras e barbáries ocorridas na história do mundo, sob o comando de um doente mental egocêntrico e perverso, originou-se, exatamente, de um longo processo de padronização dos indivíduos, através de uma propaganda dirigida a fazer com que se identificassem como membros pertencentes a uma casta superior. O orgulho comunitário da raça ariana, disseminado e cultivado cuidadosamente entre os alemães, foi o pano de fundo que permitiu a ascensão das tresloucadas ideias de Hitler, as quais foram aceitas sem sobressaltos, não por indivíduos, que certamente as questionariam, mas por um rebanho de homens brancos germânicos, previamente despersonalizados.

A massificação é um instrumento de controle social tão poderoso que o uso de uniformes rigorosamente idênticos, e o cultivo de comportamentos absolutamente sincronizados, foi utilizado não apenas por Hitler para dominar o exército alemão, mas também foi apresentado por George Orwell, através da metáfora do macacão azul, padrão de vestimenta obrigatório, no profético romance 1984. [1]

Não é possível controlar o homem sem, antes, fazer com que perca a consciência de sua individualidade e se esvazie o caráter de sua identidade.  Nada é mais dócil do que um homem que não quer nada além de “ser como os outros”.

Nisso, ficamos diante do famoso e muito apropriado conceito de homem-massa, apresentado por Ortega y Gasset,[2] o qual, segundo insiste o filósofo espanhol, nada tem a ver com classe ou camada social, mas sim com um tipo de postura adotada diante da vida e da realidade.

Que postura seria esta que particulariza o homem-massa?

Trata-se da postura de, irrefletidamente, deixar-se arrastar pela corrente, pelo moderno, pelo atual, por aquilo que está “na moda”. Nada de tradição, nenhum senso histórico, apenas o que está na “ordem do dia” ou, diríamos, “em voga”. Em consequência disso, uma enorme fragilidade diante da vida e dos acontecimentos, que leva o homem-massa a ser birrento e dado à vitimização… todos os direitos, nenhum dever… Eis o retrato não apenas de nossos jovens, mas de nossa sociedade, do homem médio, que espera e crê que algo ou alguém é responsável direto por seu destino e por sua felicidade ou infelicidade. Talvez Deus ou, pior ainda, o Estado.

O senso de responsabilidade no homem-massa é apagado pela nebulosa concepção de que, se pertence a um grupo, se é tão somente uma ínfima engrenagem de uma imensa máquina em movimento, alguém é responsável por ele, e pode, então, espernear até ser plenamente atendido em todas as suas necessidades, mesmo que as soluções tenham de cair do céu. Não é capaz de reconhecer o valor dos que, comprometidos, trabalham, empreendem, arriscam-se sem a certeza da recompensa e da justa remuneração e que, com seus esforços, movem a sociedade.

Portanto, deparamo-nos com o onipresente problema da superficialidade, que tem em grande medida moldado o homem-massa atual. A superficialidade, esse “deus” cultuado nos templos das academias e nas clínicas de estética. Ser? Bobagem! A mera aparência do ser é muito mais recompensadora e pode ser exibida em milhares de fotos nas redes sociais.

Mais uma vez, o profético George Orwell, descreveu naquele romance, que, em 1949, quando foi escrito, soava como mera ficção futurista, metáforas perfeitas de tudo quanto estamos vivendo agora. Os personagens eram obrigados a viver, e viviam, em decorrência do hábito transformado em instinto. O celular, hoje, não é mais apenas um meio de comunicação, mas um hábito instintivo que já gera, até mesmo, uma nova categoria de distúrbio mental, a dependência tecnológica, capaz de levar a crises de abstinência gravíssimas. Já se tornou parte do corpo de algumas pessoas, que se sentem amputadas ao saírem de casa sem o aparelho.

A Polícia das Ideias, também descrita no romance 1984, aparece como o politicamente correto de hoje, e lá, como aqui, cada vez mais se configura como um crime gravíssimo ter uma mente livre, ideias próprias e espírito crítico.

Somente neste estado de alienação e loucura, em que nada mais é o que é, mas apenas o que parece ser, que as pessoas serão capazes de aceitar, sem questionamentos, que os pais recebam em suas casas, das escolas, cartas assim redigidas:

QUERIDES ALUNES,

No próximo dia 15, teremos em nossa escola a performance artística Mil Tons de Preto, apresentada pela performer Pablo.

É um trabalho muito forte que contribui para reflexões sobre o racismo, e outras formas de discriminação, nos dias atuais.

Ficaremos muito felizes com a presença de TODES.

Muito bizarro? Mas já está acontecendo, em escolas PÚBLICAS. E quem paga pela performance? Você.

No romance de Orwell, o idioma também foi substituído por uma espécie de dialeto oficial chamado de Novafala, em que as palavras perderam sua significação originária para servir aos interesses do Grande Irmão, que a tudo e a todos controlava. O que pode restar a uma sociedade em que os homens perdem tudo, até o direito básico de se expressar em seu próprio idioma, e tudo aceitam com olhar bovino?

Que tipo de homem é capaz de deglutir, sem nenhuma hesitação, o total desvirtuamento de tudo o que ele conhece por realidade? Somente o homem despersonalizado, o homem não-homem, cuja consciência individual foi enfumaçada por bobagens sem sentido apenas para distraí-lo de sua verdadeira essência e identidade.

Apenas o homem-massa descrito por Ortega y Gasset, que não tem projetos e nem aspirações, que se deixa levar pela maré e só tem em conta seus próprios desejos imediatos. Ele não busca o aperfeiçoamento e nem a autenticidade, antes, vangloria-se de sua vulgaridade e ignorância, e envaidece-se de ser como todos.

Este homem aceitará tudo, e não mais aspirará a nada.


[1] Orwell, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[2] Gasset, Jose Ortega y. A Rebelião das Massas. São Paulo: Vide Editorial, 2016.


Paula Hemmerich é jurista, católica, esposa e mãe de três filhas. É articulista e escritora. Autora do romance O Olhar de um Pai, publicado pela ID Editora. É também autora de livros infantis, e exerce a função de editora do selo “3 Meninas Edições”.

Fonte: Estudos Nacionais

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