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Virtude não se cria por decreto

Quando as leis se dão de forma positiva e coercitiva, a premissa é a de que a ação sendo normatizada não é natural do ser humano – se o fosse, não precisaria ser imposta.

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Imagem digitalmente gerada no Adobe Firefly

“A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis”, diz Bastiat na primeira página de A Lei. Para ele, é imprescindível que se parta deste entendimento para organizar a sociedade; caso contrário, o que se vê é a abdução da lei para legitimar ações inerentemente contraditórias à sua natureza, ou seja, para tornar legal justamente a violação dos direitos naturais à vida, liberdade e propriedade.

Para compreender melhor a discussão proposta em A Lei, vale utilizar exemplos atuais. Para tal, sigamos a sugestão de Bastiat: “Basta verificar se a lei tira de algumas pessoas aquilo que lhes pertence e dá a outras o que não lhes pertence”. Aqui, Bastiat está falando sobre a espoliação legal, ou a legitimação da violação ao direito da propriedade. A espoliação se dá no usufruto não dos resultados do próprio trabalho, mas dos resultados do trabalho de outrem. Ele aponta que, uma vez instalada a espoliação legal, dificilmente será extinta, posto que as suas vítimas atuais serão os espoliadores do futuro – um caso crônico de combate a uma injustiça perpetuando-a.

Vejamos a ideia de que os ricos devem doar parte de suas fortunas aos pobres ou pagar impostos proporcionais à sua riqueza. Recentemente, David Beasley, diretor de uma agência da ONU, afirmou em entrevista à CNN que 2% da fortuna do empresário Elon Musk (US$ 6 bilhões) resolveria o problema da fome mundial. Em resposta, o empresário se comprometeu a doar esse valor se a ONU criasse um plano detalhado sobre como esse valor realmente acabaria com a fome do mundo. A resposta da ONU consistiu em duas tabelas simples e a divisão de US$ 6,6 bilhões da seguinte forma: US$ 3,5 bilhões em alimentos e logística, US$ 2 bilhões em vales, US$ 700 milhões em desenho e implantação dos programas e US$ 400 milhões para gestão.

Segundo a ONU, esses 2% da fortuna de Elon Musk assistiriam 42 milhões de pessoas por um ano, ou seja, postergariam sua inanição em alguns meses. De fato, não são necessários tantos detalhes para compreender que alimentar essas pessoas por um ano está muito longe de salvar suas vidas ou acabar com a fome no mundo. Sobre esse episódio, vale dizer que em 2020 a World Food Programme (WFP), agência da ONU dirigida por Beasley, recebeu US$ 8,4 bilhões para seus programas de acesso a alimentos. O valor, que supera em US$ 1,8 bilhão o valor solicitado a Musk, claramente não acabou com a fome do mundo. Não surpreende que, em 2018, a WFP tenha sido listada pelo Center for Global Development (CGD) como a organização humanitária internacional mais ineficaz. Aliás, depois disso a WFP saiu do ranking por ser categorizada como uma entidade assistencialista e não de desenvolvimento, não agindo, portanto, sobre as causas-raiz dos problemas que ataca.

A taxação de grandes fortunas é uma ideia antiga no mundo inteiro e que ganhou mais notoriedade em função da recessão econômica provocada pela pandemia da Covid-19. No Brasil, há 37 projetos do gênero parados no Congresso, e que são amplamente defendidos pela sociedade civil (dado que 99% da população não pagaria este imposto, fica fácil entender a razão). O discurso de que o 1% da população mais rica deveria bancar a desigualdade do país ganha crescente espaço na mídia, mas, felizmente, o que ainda tem mais peso é o poder indiscutível dos fatos: o que aconteceu com a grande maioria dos países que adotou o imposto sobre grandes fortunas foi a evasão de riqueza, gerando o efeito oposto ao desejado.

Voltemos a Bastiat para refletir sobre como este exemplo ilustra um problema conceitual. “Com efeito, não é a justiça que tem existência própria, mas a injustiça. Uma resulta na ausência da outra”, reflete o autor. O ser humano é naturalmente propenso à defesa de seus direitos naturais em nível individual; em sociedade, é essencial que haja uma mediação destes direitos entre indivíduos, função que cabe ao Estado. Portanto, as leis não devem reger as ideias, as vontades ou o trabalho dos indivíduos para impor uma decisão arbitrária de alguém. Antes, o único motivo para que elas existam é justamente impedir que nossos direitos sejam violados por qualquer outro indivíduo ou instituição.

O que aconteceu com a grande maioria dos países que adotou o imposto sobre grandes fortunas foi a evasão de riqueza, gerando o efeito oposto ao desejado

Quando as leis obedecem à sua natureza negativa, limitada à garantia dos direitos naturais, o Estado é mínimo, os indivíduos são livres para escolher como desejam viver suas vidas e se mantém a harmonia entre a liberdade de todos. Para Bastiat, este é o cenário que contribui para o exercício da “tendência fatal da humanidade”: o progresso incessante, ininterrupto e infalível. E prova-se correto: os países que mais prosperam são aqueles onde os indivíduos usufruem de mais liberdade e, não por coincidência, os países na lista da WFP estão ranqueados pelo Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation nas respectivas posições, de um total de 178: Afeganistão (146), Etiópia (151), Paquistão (152), Haiti (155), Congo (156), Sudão (175) e Venezuela (177). Ninguém seria contra doar dinheiro para a população desses países, mas todos havemos de concordar que fazer isso sem endereçar as causas-raiz do seu subdesenvolvimento não só é indiscutivelmente ineficaz, como também é uma forma de perpetuar sua dependência econômica.

A reflexão filosófica que este episódio nos impõe, presente na discussão de Bastiat, é que, quando as leis se dão de forma positiva e coercitiva, a premissa é a de que a ação sendo normatizada não é natural do ser humano – se o fosse, não precisaria ser imposta. Portanto, quanto mais as leis determinam como as pessoas devem agir, mais elas revelam o desprezo pela humanidade de quem as criou: a ideia de que o ser humano deixado livre para agir conforme suas vontades se afasta das virtudes e toma decisões ruins para si e os outros. Assim, os governantes que determinam como todos devem agir consideram-se acima das demais pessoas. “Enquanto a humanidade tende para o mal, eles, os privilegiados, tendem para o bem. Enquanto a humanidade caminha para as trevas, eles aspiram à luz; enquanto a humanidade é levada para o vício, eles são atraídos para a virtude”, ironiza Bastiat ao revelar a contradição óbvia na qual incorre este pensamento. Mas será que a lei é responsável pela nossa inclinação à virtude? Vejamos.

Em 2020, os norte-americanos doaram o total recorde de US$ 471 bilhões para a caridade (equivalente a mais de 78 vezes o valor “cobrado” de Elon Musk pela ONU), segundo relatório da Giving USA: isso durante a pandemia e sem qualquer lei que os obrigasse. O oposto aconteceu no Brasil: o volume de doações caiu 24% em cinco anos, totalizando R$ 10,3 bilhões em 2020. Seriam os norte-americanos mais caridosos que os brasileiros? É claro que não. São, antes de tudo, mais livres: no citado ranking da Heritage Foundation, os Estados Unidos figuram na posição 20 e o Brasil, na posição 143. Isso só prova que, em países em que a lei age como deveria, observa-se não só a tendência apontada por Bastiat do progresso incessante, ininterrupto e infalível, mas também a tendência ao altruísmo e à fraternidade em sua única forma possível: voluntariamente. “Com efeito, é-me impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a fraternidade possa ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada”, observa Bastiat.

Enquanto os brasileiros doavam cada vez menos, o Movimento Juntos vandalizava o Touro de Ouro em frente à Bolsa de Valores em São Paulo. O movimento destaca: “Seguiremos buscando expor a contradição entre a existência de bilionários enquanto o povo vive à procura de ossos de boi e carcaças de frango”. Enquanto movimentos com este discurso se fortalecem com a certeza de que manifestam a virtude que falta no ser humano “comum”, compete aos lúcidos expor a contradição entre combater a pobreza minando a liberdade. Ao refletir sobre a função da lei, Bastiat indaga: “Sinceramente, como se pode imaginar o uso da força contra a liberdade dos cidadãos, sem que isto não fira a justiça e o seu objetivo próprio?” A resposta é simples: não se pode.


Flávia Sato é graduada em Comunicação Social, pós-graduada em Mindful Leadership pela New York University e em Gestão Emocional nas Organizações, e associada ao Instituto de Formação de Líderes de São Paulo.

Fonte: Gazeta do Povo

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