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Viva o Capital!

É preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem milagres.

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Foto: Mathieu Stern/Unsplash

Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente equivocadas.  Assim, atribuem-se a capitães de indústria e a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”, “o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”.  Ao usar essas expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de outrora.  Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do chocolate absolutamente não rege, ele serve.  Não reina sobre um território conquistado, independente do mercado, independente de seus compradores.  O rei do chocolate — ou do aço, ou do automóvel, ou qualquer outro rei da indústria contemporânea — depende da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.  Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo que o oferecido por seus concorrentes.

Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.  Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico — lorde ou duque –, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava, pelo resto dos seus dias. 

No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento da época existiam quase exclusivamente em proveito dos ricos.  A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia) trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias de beneficiamento, voltadas para a cidade.  Esse rígido sistema da sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas regiões da Europa.

Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso de gente no campo.  Os membros dessa população excedente, sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação.  Também não lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo acesso lhes era vedado pelos reis das cidades.  O número desses “párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse o que fazer com eles.  Eram, no pleno sentido da palavra, “proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas de correção.  Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à preservação do sistema social vigente. 

Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores.  Naquele tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões de habitantes, dos quais mais de um milhão — provavelmente dois — não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor nada proporcionava.  As medidas a tomar com relação a esses deserdados constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra. 

Outro sério problema era a falta de matérias-primas.  Os ingleses eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos, no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas? Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.  Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.

Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do capitalismo moderno.  Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis, surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa.  Foi uma inovação.  Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que pudessem satisfazer as necessidades de todos.  E foi essa a origem do capitalismo tal como hoje funciona.  Foi o começo da produção em massa — princípio básico da indústria capitalista.  Enquanto as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis a toda a população.  Era a produção em massa, para satisfazer às necessidades das massas.

Este é o principio fundamental do capitalismo tal como existe hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas, produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.  As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude das grandes empresas.  E, hoje, os empregados das grandes fábricas são, eles próprios, os maiores  consumidores dos produtos que nelas se fabricam.  Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.

Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande empresa, incorre-se em grave erro.  Nas grandes lojas dos Estados Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda naqueles estabelecimentos.  Os que pensam que a grande empresa detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.

Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível a concorrência.  Alegava-se que, na área dos transportes, o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si mesmo, pois que eliminara a concorrência.  O que se descurava era o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer outro.  Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para atender às necessidades do momento.  Mas outros concorrentes não tardaram a aparecer.  A livre concorrência não significa que se possa prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por alguém.  A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro autor fez jus por suas obras.  Significa o direito de escrever outra coisa.  A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias, por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque em situação muito precária de competitividade.

Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito ao transporte de passageiros.

O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.  E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio, transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem precedentes da população mundial. 

Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida.  Hoje, mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século XVIII.  E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais que “aventuras” políticas e militares evitáveis.

Estes são os fatos acerca do capitalismo.  Assim, se um inglês — ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do mundo — afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo, seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”

Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente atacado e criticado.  É preciso compreender a origem dessa aversão.  É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo, não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia fundiária — a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.  Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável: no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.  A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das massas trabalhadoras. 

Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores era extremamente baixo.  Mas, se as condições de vida nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas, não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.

A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores embustes da história.  As mães que trabalhavam nas fábricas não tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas para se dirigir às fábricas — corriam a elas porque não tinham cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas cozinharem.  E as crianças não provinham de um ambiente confortável: estavam famintas, estavam morrendo.  E todo o tão falado e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o que significa que centenas de milhares de crianças — que em outros tempos teriam morrido — sobreviveram e cresceram, tornando-se homens e mulheres.

Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas anteriores eram muito insatisfatórias.  Foi o comércio capitalista que as melhorou.  Foram justamente aquelas primeiras fábricas que passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação de alimentos e matérias-primas de outros países.  Mais uma vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil usar uma palavra mais branda — a história. 

Há uma anedota — provavelmente inventada — que se costuma contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício na Inglaterra, Benjamin Franklin ouviu do proprietário cheio de orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.” Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também para os seus empregados?”

Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados, visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matéria-prima.  Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a Europa continental.  A Inglaterra atravessava uma fase de escassez de alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia, da Hungria.  Assim, as exportações — como as de tecidos — se constituíam no pagamento de importações de alimentos necessários à sobrevivência da população inglesa.  Muitos exemplos da história dessa época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia com relação aos trabalhadores.  Quero citar apenas dois.  Um é o famoso sistema inglês do seed and land.  Por tal sistema, o governo inglês pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber um salário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam e esse mínimo.  Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor de pagar salários mais altos.  A pequena nobreza continuaria pagando o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado pelo governo.  Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem as atividades rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas.

Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação da aristocracia rural contra o novo sistema de produção.  Na Alemanha, os aristocratas prussianos — tendo perdido muitos trabalhadores para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor remuneração — cunharam uma expressão especial para designar o problema: “fuga do campo” — Landflucht.  Discutiu-se, então, no parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra aquele mal –– e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto de vista da aristocracia rural.  O príncipe Bismarck, o famoso chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.  Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou o campo? Por que vive agora em Berlim?'”

E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.  Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados.  Estes acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.

Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas: ambas têm alimento, roupas e abrigo.  Mas no século XVIII, e nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo, não.  Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um Chevrolet.  O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar, uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.  Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e apartamentos próprios. 

As investidas contra o capitalismo — especialmente no que se refere aos padrões salariais mais altos — tiveram por origem a falsa suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas diferentes daquelas que trabalham nas fábricas.  Certamente, nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor.  Mas o fato é que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.

No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas que os manipulam.  Não é a companhia cinematográfica de Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas.  E não é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para a luta.  A partir da distinção entre empregado e empregador, traça-se, no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na vida real.  Nesta, empregador e empregado são, em última análise, uma só e a mesma pessoa.

Em muitos países há quem considere injusto que um homem obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário que outro, responsável apenas pela própria manutenção.  No entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de um trabalhador.

A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo, se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão, se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos? Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo: “Em principio, sim.  Mas na prática tenderia a comprar o pão feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador a quem os compradores não pagam o suficiente para que ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar adiante seus negócios.

O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera sobre a humanidade.  Esse homem foi Karl Marx.  Não há razão, contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados pelo capitalismo.  Esses progressos são fruto da acumulação do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas poupam — e investem — parte desse montante.

Reina um grande equívoco em torno desse problema.  Ao longo destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital, com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a partir desse uso.  Tratarei do capitalismo particularmente em minhas palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema extremamente crítico da política atual que é a inflação.  Todos sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país.  Constitui hoje um problema em todas as partes do mundo.  O que muitas vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte: poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir ou receber salários. 

Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro — mil dólares, digamos — e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por falta do capital necessário.  Que fará então o empresário com o capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro uso que dará a esse capital suplementar será a contratação de trabalhadores e a compra de matérias-primas — o que promoverá, por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação dos salários e dos preços dessas matérias-primas.  Muito antes que o poupador ou o empresário  tenham obtido algum lucro em tudo isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas, o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios das poupanças adicionais.

O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las corretamente.  Mas os trabalhadores, assim como os produtores de matéria-prima, auferem as vantagens de imediato.  Muito se falou, trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” — como a denominavam — de Henry Ford.  Uma das maiores façanhas do senhor Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos pelas demais industrias ou fábricas.  Sua política salarial foi descrita como uma “invenção”.  Não se pode, no entanto, dizer que essa nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade do senhor Ford.  Um novo ramo industrial — ou uma nova fábrica num ramo já existente — precisa atrair trabalhadores de outros empregos, de outras regiões do país e até de outros países.  E não há outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de salários mais altos aos trabalhadores.  Foi o que ocorreu nos primórdios do capitalismo, e é o que ocorre até hoje.

Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores mais do que estes ganhavam antes.  Ê verdade que grande porcentagem desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.  Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes fosse oferecida.  Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação do capital e a implantação de um número cada vez maior de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao qual já me referi.  A reiterada caracterização depreciativa do capitalismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim.  A tese de Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto de  que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas mãos, ou mesmo nas de um homem só.  Como consequência, as massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam os bens dos opulentos proprietários. 

Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista, qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria das condições dos trabalhadores.  Em 1865, falando perante a Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores condições para a população trabalhadora era “absolutamente errônea”.  Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação de melhores salários e menor número de horas de trabalho de conservadora –– era este, evidentemente, o termo mais desabonador a que Marx podia recorrer.  Sugeriu que os sindicatos adotassem uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo “socialismo” — a posse dos meios de produção pelo governo.

Se consideramos a história do mundo — e em especial a história da Inglaterra a partir de 1865 — verificaremos que Marx estava errado sob todos os aspectos.  Não há um só país capitalista em que as condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita.  Todos esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores jamais poderiam melhorar.  Adotavam uma falsa teoria, a famosa “lei de ferro dos salários”.  Segundo esta lei, no capitalismo, os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.

Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salários, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão mais filhos.  Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores a um nível mínimo necessário para a subsistência — àquele nível mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da população trabalhadora.

Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve um conceito de trabalhador idêntico ao adotado — justificadamente — pelos biólogos que estudam a vida dos animais.  Dos camundongos, por exemplo.  Se colocarmos maior quantidade de alimento à disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número deles sobreviverá.  Se a restringirmos, restringiremos o número dos sobreviventes.  Mas com o homem é diferente.  Mesmo o trabalhador — ainda que os marxistas não o admitam — tem carências humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.  Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população; resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão de vida média.  É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em desenvolvimento, às da África, por exemplo.  Devemos compreender, contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se na disponibilidade de capital.  Isso explica a diferença entre as condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na Índia.  Neste país foram introduzidos — ao menos em certa medida — modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito foi um aumento inaudito da população.  No entanto, como esse crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento correspondente do montante de capital investido no país, o resultado foi um agravamento da miséria.  Quanto mais se eleva o capital investido por indivíduo, mais próspero se torna o país. 

Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem milagres.  Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o chamado milagre econômico alemão — a recuperação da Alemanha depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.  Mas não houve milagre.  Houve tão somente a aplicação dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo, embora essa aplicação não tenha sido completa em todos os pontos.  Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas, pois que é delas que resulta.


Esse texto é o primeiro capítulo do livro As Seis Lições, e foi traduzido por Maria Luiza Borges.

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.

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