A Suprema Corte e a usurpação do protagonismo do cidadão

A Suprema Corte é só mais um órgão político, sem nenhum membro eleito pelo povo

Atualmente, há um frenesi nos Estados Unidos sobre a vaga na Suprema Corte após a morte de Antonin Scalia [algo semelhante se passou no Brasil com a recente indicação de Cristiano Zanin]. Isso deveria ser suficiente para deixar claro até mesmo para o observador mais ingênuo que a Suprema Corte é uma instituição partidária e política, e não um grupo de sábios apolíticos desinteressados como o tribunal quer que pensemos. Como escrevi em “The Mythology of the Supreme Court”, a ideia do tribunal como um grupo de pensadores jurisprudenciais profundos é um conto para crianças em idade escolar:

“Essa visão da Corte é, obviamente, irremediavelmente fantasiosa, e a verdadeira natureza política da Corte está bem documentada. Sua política pode assumir muitas formas. Para um exemplo de seu papel no patrocínio político, não precisamos olhar além de Earl Warren, um ex-candidato a presidente e governador da Califórnia, que foi nomeado para o tribunal por Dwight Eisenhower. É amplamente aceito que a nomeação de Warren foi uma vingança pela não oposição de Warren à nomeação de Eisenhower na convenção republicana de 1952. A proposição de que Warren de alguma forma se transformou de político em pensador profundo após sua nomeação não é convincente na melhor das hipóteses. Ou podemos apontar para a famosa ‘mudança no tempo que salvou nove’, na qual o juiz Owen Roberts reverteu completamente sua posição legal sobre o New Deal em resposta a ameaças políticas do governo Franklin Roosevelt. De fato, os juízes da Suprema Corte são políticos, que se comportam da maneira que a teoria da ‘Escolha Pública’ nos diz que deveriam. Eles procuram preservar e expandir seu próprio poder”.

Na prática, a Suprema Corte é apenas mais uma legislatura federal, embora esta decida questões de política pública com base nas opiniões de apenas cinco pessoas, a maioria das quais passa seu tempo totalmente distantes da realidade econômica das pessoas comuns enquanto brincam com os oligarcas e outras elites.

O poder legislativo do tribunal é igualado pelo seu poder político, uma vez que cada vaga no tribunal é um presente para os partidos políticos dominantes. Cada vez que um juiz morre ou se aposenta, o evento oferece aos partidos políticos mais uma oportunidade de emitir cartas histéricas de arrecadação de fundos para os apoiadores mais endinheirados e exigir apoio não qualificado das bases, ao mesmo tempo em que afirma que o processo de nomeação para a Corte torna a próxima eleição “a mais importante de sempre”.

Parece incomodar poucos, no entanto, que vivamos em um sistema político onde as questões políticas e econômicas mais importantes do dia – ou assim nos dizem – devem ser decididas por um pequeno grupo de pessoas, sejam elas o presidente do Federal Reserve, cinco juízes da Suprema Corte ou um presidente com sua “caneta e telefone”.  

Assim como é extremamente disfuncional para uma grande economia se apegar a cada palavra do presidente do Banco Central, também deveria ser considerado anormal e insalubre para um país de 320 milhões de habitantes esperar ansiosamente pelos últimos prognósticos de nove amigos de presidentes em túnicas pretas de seus escritórios palacianos em Washington, DC.

O tribunal é apenas um grupo de políticos em vestes extravagantes

Somos informados por especialistas e políticos de todo o espectro o quão indispensável, inspiradora e absolutamente essencial é a Suprema Corte. Na verdade, deveríamos procurar maneiras de minar, incapacitar e, de maneira geral, forçar a Corte à irrelevância.

Com os esperados elogios a Scalia entre seus partidários, estamos sendo repreendidos com a ideia de que Scalia era um “originalista” que se ateve obstinadamente ao texto claro da Constituição como imaginado por seus autores. Na verdade, Scalia não era um originalista, pois, se fosse, teria rejeitado toda a noção de revisão judicial, que é em si uma total inovação e fabricação inventada pelo juiz John Marshall. Em nenhum lugar o Artigo III da Constituição (a parte que trata do tribunal e tem meia página) dá ao tribunal o poder de decidir sobre o que pode ser legal ou não em cada estado, cidade, vila ou empresa dos Estados Unidos. Além disso, como Jeff Deist observa, os poderes da Corte que aceitamos tão alegremente como fato consumado são em sua maioria inventados:

  • O conceito de revisão judicial é uma invenção da Corte, sem base no Artigo III. 
  • Jurisprudência constitucional não é direito constitucional.
  • O Supremo Tribunal é supremo apenas sobre os tribunais federais inferiores: não é supremo sobre outros ramos do governo.
  • O Congresso claramente tem autoridade constitucional para definir e restringir a jurisdição dos tribunais federais.

Uma ferramenta de centralização do poder

Mas não espere que muitos em Washington admitam isso tão cedo. A Suprema Corte desempenha uma função muito importante na centralização do poder federal em DC e nas mãos de um pequeno número de altos funcionários federais. E como é conveniente para os membros das classes dominantes influenciarem e acessarem esses guardiões da respeitabilidade intelectual do governo federal: os membros da Corte, presidentes e senadores são geralmente todos os membros da mesma classe socioeconômica, enviam seus filhos para as mesmas escolas de elite e trabalham e vivem juntos nos mesmos pequenos círculos sociais. Ao mesmo tempo, esse círculo social e profissional fechado também ajuda a diminuir a influência daqueles que estão fora da bolha de Washington, DC.

O Tribunal em sua forma atual pode ser reformado da noite para o dia

Se quisesse, o Congresso poderia reformar a Corte esta tarde. Nada mais do que uma simples legislação seria necessária para mudar radicalmente ou extinguir completamente os tribunais federais de primeira instância. O Congresso poderia decidir quais tópicos estão sob a jurisdição dos tribunais inferiores e, assim, limitar também a jurisdição da Suprema Corte. O Congresso também pode decidir que a Suprema Corte seja composta por um juiz ou por 100 juízes.

De fato, uma vez que a Suprema Corte nada mais é do que uma legislatura, por que não torná-la uma? Por que não fazer da Suprema Corte um corpo de 50 “juízes”, com o entendimento de que o Senado não ratificará qualquer nomeação que não cumpra a regra de que cada estado tenha um juiz na Corte? A política e a ideologia impedem isso, mas nenhuma disposição constitucional o faz. 

“Mas o tribunal simplesmente declararia todas essas reformas inconstitucionais”, alguns podem dizer. Isso é verdade, embora, para isso, precisemos apenas parafrasear as palavras (possivelmente apócrifas) de Andrew Jackson: “o Tribunal tomou sua decisão. Agora, deixe-os aplicá-la”.

O Tribunal não precisa se preocupar, porém, pois quase sempre pode contar com o apoio do Presidente e do Congresso justamente porque o Tribunal desempenha um papel essencial no aumento do poder dos outros poderes do governo federal.

Usurpação do protagonismo: O povo sem representantes que os governam

Muitas vezes nos dizem para reverenciar o Tribunal simplesmente porque está consagrado na Constituição. A escravidão também estava consagrada na Constituição. Precisamos reverenciar isso?

Mesmo que a forma atual da Suprema Corte fosse realmente constitucional (o que, novamente, não é), ainda seria uma relíquia obsoleta de uma era distante. A ideia de que a Suprema Corte poderia de alguma forma tratar de todas as questões legais que surgem em uma vasta confederação era absurda desde o início, ainda mais agora. Ao reconhecer isso, os autores da Constituição criaram a Corte como um corpo designado a tratar apenas de conflitos entre estados, ou entre indivíduos de diferentes estados. Ou seja, deveria evitar conflitos que pudessem levar a crises entre os governos estaduais; foi projetada para evitar guerras entre os estados. Se o confeiteiro local deveria ou não fazer um bolo para casais gays, não estava exatamente no topo da agenda.

Mesmo no final do século XVIII, porém, o status da Corte como um minúsculo clube de elite exigia a criação do mito de que a Corte era de alguma forma “apolítica”, reforçada pela criação de um mandato vitalício para os juízes, não importando quão senis ou fora de alcance. Caso contrário, as ideias predominantes de representação no governo na época nunca teriam permitido que uma instituição política como a Corte ganhasse aceitação. Isso pode ser ilustrado pelo fato de que, em 1790, o Congresso era muito mais “democrático” do que é agora, no sentido de que havia muito mais representantes por pessoa do que hoje. As eleições em muitos governos estaduais eram eventos anuais e os distritos legislativos eram muito pequenos para os padrões de hoje, garantindo que seus representantes eleitos vivessem próximos a você e estivessem fisicamente acessíveis. 

Em contraste com isso, em 1790, havia um juiz da Suprema Corte para cada 600.000 americanos. Hoje, há um juiz da Suprema Corte para cada 35 milhões de americanos. Nem mesmo o politburo soviético conseguiu esse nível de não-representação. 

Por outro lado, não há razão para que um conselho de governos estaduais não possa ser empregado para tratar de questões de conflitos entre estados, e os estados (ou mesmo pequenas porções deles) — e não nove nomeados políticos — devem desempenhar a função de revisão judicial. Este não é o século XVIII. Ter delegados de uma variedade de estados diversos e geograficamente variados permanecendo em contato constante e se encontrando regularmente não é de forma alguma uma impossibilidade logística. 

Pior ainda, muitos dos juízes não têm um emprego de verdade há décadas e não têm ideia de como a realidade realmente funciona. É improvável que os membros mais velhos do Tribunal pudessem usar o Google para encontrar um número de telefone na internet, muito menos entender as complexidades de como as pessoas modernas administram seus negócios, criam suas famílias ou funcionam na vida cotidiana. O Tribunal é em grande parte o domínio dos geriatras que são generosamente pagos para fazer julgamentos complexos sobre um mundo no qual eles raramente vivem e mal conseguem entender.

Se os americanos querem um governo com maior probabilidade de deixá-los em paz, devem ignorar os apelos para eleger outro político que apenas indicará outro doador ou aliado político para o tribunal. Em vez disso, os governos estaduais e locais devem procurar a todo momento ignorar, anular e, em geral, desconsiderar as decisões da Corte quando elas contrariam a lei local e as instituições locais, onde – bem diferente da Suprema Corte – os cidadãos comuns têm alguma influência real sobre as instituições políticas que afetam suas vidas.


Ryan McMaken é bacharel em economia e mestre em políticas públicas e relações internacionais pela Universidade do Colorado. É editor sênior do Mises Institute.

Fonte: Mises Brasil

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