Era uma manhã fria de novembro de 1940, em Varsóvia, quando Irena Sendler, uma assistente social polonesa, estava prestes a cometer o ato mais corajoso de sua vida. Usando sua posição como membro do Departamento de Bem-Estar Social nazista, ela contrabandeava crianças judias para fora do gueto, escondendo-as em cestos, sacos de lixo e até caixões. Cada batida na porta, cada toque do telefone poderia significar o fim para Irena e para as crianças que ela tentava salvar. Mas a coragem de Irena, sua disposição de agir corretamente mesmo em face de um perigo esmagador, fez dela uma heroína que mudou milhares de vidas, provando que, mesmo nas épocas mais sombrias, as virtudes podem brilhar intensamente e inspirar mudanças profundas.
Em 1943 Irena Sendler foi presa pela Gestapo e levada para a prisão de Pawiak onde foi brutalmente torturada. Foi condenada à morte, mas por uma manobra do Conselho para a Ajuda aos Judeus, conhecido como Zegota, conseguiu fugir da execução. Dias depois encontrou o seu nome na lista de polacos executados. Mesmo com tanto medo e correndo o risco de ser executada, Irena continuou a trabalhar com uma identidade falsa. Quando todo o terror passou, ficou conhecida como “o Anjo do Gueto de Varsóvia”. Internacionacionalmente recebeu honras pela coragem e protagonismo por salvar tantas crianças.
Assim como Irena Sendler encontrou nas virtudes a força para enfrentar os horrores do Holocausto, em tempos de incerteza e pessimismo. Hoje, quando a frieza e o mundo digital parecem nos distanciar uns dos outros, essas mesmas virtudes emergem como luzes em meio à escuridão. Muitos se sentem perdidos, desconectados e desanimados. No entanto, não é a primeira vez na história que enfrentamos tal desalento. Períodos de pessimismo e desilusão marcam nossa jornada neste mundo. Uma saída para superar essas adversidades sempre foi, e sempre será, o retorno às virtudes que nos fundamentam como seres humanos.
As virtudes não apenas nos ajudam a enfrentar os desafios do presente, mas também nos capacitam a construir um futuro em que cada um de nós se torna um protagonista para o bem. Neste artigo, exploramos como as virtudes de prudência, coragem, temperança e justiça, conceitos enraizados na filosofia de Aristóteles e em nossa tradição ocidental, podem nos dar uma luz em tempos difíceis e nos guiar para um papel ativo na transformação de nossa sociedade.
Prudência: tomando decisões informadas
A prudência, conforme exposta por Aristóteles em sua obra “Ética a Nicômaco”, é a virtude que habilita a mente a discernir corretamente entre ações que são boas e aquelas que devem ser evitadas· Esta virtude é essencial em um mundo onde as escolhas frequentemente são rápidas e superficiais, muitas vezes influenciadas por pressões sociais ou pela volatilidade das opiniões online· A prudência envolve uma deliberação cuidadosa e a consideração das consequências de nossas ações, buscando o meio-termo que evita tanto a imprudência quanto a hesitação excessiva·
Historicamente, a prudência tem sido associada à habilidade de planejar para o futuro, de gerenciar bem os recursos e de fazer julgamentos equilibrados em situações complexas· Na antiguidade, esta virtude era valorizada como a chave para a liderança e para a boa administração da vida pública e privada· Hoje, a prudência se manifesta na habilidade de tomar decisões financeiras sábias, de escolher carreiras com base em uma avaliação honesta de nossas habilidades e aspirações, e de cultivar relacionamentos que são mutuamente benéficos e respeitosos·
Uma pessoa que decide economizar parte de sua renda mensal em vez de gastar impulsivamente demonstra prudência· Esta decisão não apenas assegura uma estabilidade financeira futura, mas também reflete um planejamento consciente e uma consideração equilibrada entre o prazer imediato e os benefícios a longo prazo·
Coragem: enfrentando desafios com determinação
A coragem, na perspectiva de Aristóteles, é a virtude que nos capacita a enfrentar o medo e as dificuldades com firmeza e propósito, mantendo-se firme entre os extremos da covardia e da temeridade· Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles descreve a coragem como essencial para suportar a dor e o perigo por uma causa justa, sem ser dominado pelo medo, mas também sem se lançar imprudentemente em riscos desnecessários·
A coragem tem sido um tema constante na filosofia e na literatura· Homero, em suas épicas narrativas, exaltava a coragem dos heróis gregos como uma qualidade indispensável para a grandeza e para a honra· Os estoicos, por sua vez, enfatizavam a importância da coragem na aceitação e enfrentamento do sofrimento inevitável da vida· Em um contexto moderno, a famosa frase do General George S· Patton, “Coragem é medo aguentando mais um minuto”, encapsula a essência de continuar a agir apesar do medo e da incerteza·
Um jovem profissional que, apesar do receio de falhar, decide lançar sua própria empresa, investindo suas economias e tempo em uma ideia na qual acredita profundamente, está exemplificando a virtude da coragem· Ele enfrenta o medo de incertezas econômicas e a possibilidade de fracasso, mas sua determinação em perseguir seu sonho reflete a verdadeira essência da coragem·
Temperança: mantendo o equilíbrio pessoal
A temperança, como definida por Aristóteles, é a virtude que modera nossos desejos e paixões, mantendo o equilíbrio entre a indulgência excessiva e a abstinência rigorosa· Em uma era marcada pelo consumo descontrolado e pelo imediatismo, a temperança se torna ainda mais crucial· Ela nos ensina a regular nossos impulsos, a encontrar satisfação no suficiente e a buscar um equilíbrio saudável em todos os aspectos da vida·
Historicamente, a temperança foi uma virtude central na filosofia estoica, onde era vista como essencial para a autodisciplina e o controle das paixões· Na tradição cristã, foi incorporada como uma das virtudes cardeais, enfatizando a importância do equilíbrio e da moderação· No mundo contemporâneo, a temperança se reflete na habilidade de manter uma vida saudável e equilibrada, resistindo às tentações do excesso, seja em alimentação, consumo de bens, ou em atividades que podem se tornar viciantes·
Alguém que decide equilibrar seu tempo entre trabalho, lazer e descanso, evitando o excesso de trabalho ou de entretenimento, está praticando a temperança· Esta abordagem não só melhora sua qualidade de vida, mas também promove um bem-estar sustentável a longo prazo·
Justiça: agindo com retidão e retorno
A justiça, segundo Aristóteles, é a virtude que envolve dar a cada um o que é devido, mantendo uma harmonia entre direitos e deveres· Em “Ética a Nicômaco”, ele discute a justiça como a disposição de tratar os outros de maneira justa e honesta, de acordo com o esforço individual, o que é essencial para a vida em comunidade e para o funcionamento das instituições sociais·
A justiça tem sido um tema central na filosofia ocidental, com Platão abordando-a em sua obra “República” como a harmonia e a ordem na cidade e na alma· Aristóteles, aprofundando essa ideia, descreveu a justiça em termos de justiça distributiva e corretiva, cada uma lidando com diferentes aspectos das relações sociais e da resolução de conflitos· Em tempos modernos, pensadores como John Rawls reexaminaram a justiça em termos de princípios de equidade e de direitos individuais·
Um gestor que decide implementar uma política de remuneração justa para seus funcionários, levando em conta o desempenho e a contribuição de cada um, está exercitando a virtude da justiça· Ao fazer isso, ele promove um ambiente de trabalho mais harmonioso e respeitoso, onde os direitos de todos são respeitados e valorizados·
Protagonismo para o bem
Assim como Irena Sendler, uma pessoa comum que encontrou a coragem e a compaixão para salvar milhares de crianças do Holocausto, cada um de nós possui a capacidade de usar as virtudes para transformar a escuridão que enfrentamos em nossa própria época. Irena, diante de horrores inimagináveis, protagonizou a mudança que desejava ver no mundo, guiada por um profundo senso de justiça e humanidade. As virtudes são mais do que qualidades individuais; são a essência que nos capacita a viver com integridade e propósito. Em um mundo que muitas vezes parece desolador e complexo, as virtudes funcionam como uma bússola moral, direcionando nossas ações e decisões em direção ao bem.
Acreditar no poder das virtudes nos dá a força para assumir um papel ativo na criação de um mundo melhor. Não devemos esperar por mudanças vindas de outros, mas entender que cada ação nossa pode promover um impacto positivo. Ao cultivar a prudência, a coragem, a temperança e a justiça, podemos nos tornar os protagonistas das melhorias que desejamos ver em nossa sociedade. Essas virtudes oferecem um referencial claro para agir com ética, enfrentar adversidades, manter o equilíbrio e tratar os outros com retidão.
Nossa responsabilidade é grande, mas também inspiradora. Assim como Irena, que, apesar de ser uma pessoa comum, viu a humanidade em cada criança que salvou, nós também podemos enxergar nossa capacidade de promover a transformação ao nosso redor. Assumir a responsabilidade de criar uma sociedade direcionada para o bem, equilibrada e humana, na qual cada um de nós desempenha um papel essencial na promoção do protagonismo e na construção de um futuro mais luminoso para todos.
Para saber mais
Aristóteles
- Ética a Nicômaco – Editora Nova Cultural, 1991.
- Política – Edições Loyola, 1997.
São Tomás de Aquino
- Suma Teológica – Editora Loyola, 2001.
- Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles – Editora Paulus, 1998.
Cícero
- Sobre os Deveres – Editora Martins Fontes, 2010.
Peter Kreeft
- Back to Virtue – Ignatius Press, 1992.
Roger Scruton
- How to Be a Conservative – Bloomsbury, 2014.
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