Recentemente resolvi assistir ao filme “O Gato de Botas 2 – O último pedido” com minha filha. Confesso que não estava muito animado com o programa, mas à medida que a história foi se desenrolando, percebi que estava diante de uma preciosidade, tanto que o filme foi indicado ao Oscar 2023, concorrendo ao título de melhor animação.
O segundo filme do personagem peludo parece ter uma maturidade que vai além da história do primeiro, mais cômico e infantil. A edição 2 do filme traz uma história de transformação profunda, que ressoa com os desafios e aspirações de muitos de nós. A sequência traz o personagem do Gato de Botas, um herói felino que vive sem restrições, perseguindo glória e fama com destemor e orgulho. No entanto, a narrativa toma um rumo inesperado quando ele esgota suas “sete vidas”, sendo obrigado a encarar a mortalidade de forma inédita. Neste evento dramático a história passou a ser um catalisador para uma reflexão sobre as virtudes e o verdadeiro significado de viver com integridade.
Com a perda de suas “vidas”, o Gato de Botas é forçado a reavaliar seu comportamento imprudente e arrogante. Inicialmente, ele exibe bravura desenfreada, confiante em sua invulnerabilidade, parecendo não acreditar que estava diante dos fatos da vida. Mas, conforme sua mortalidade se torna inescapável, ele é confrontado com a necessidade da prudência — a virtude de discernir o bem verdadeiro e escolher ações apropriadas. Aristóteles destacava a prudência como essencial para a vida ética, uma sabedoria prática que o Gato de Botas começa a incorporar, à duras penas, ao entender o valor da cautela e da reflexão em suas escolhas, algo que antes ignorava em sua busca por aventuras e notoriedade.
À medida que a história se desenrola, a transformação do Gato de Botas também nos ensina sobre a coragem em um sentido mais profundo. O personagem parte de uma confusa temeridade, uma busca impensada pelo perigo, sem uma reflexão sobre as consequências de seus atos. Contudo, a perda e a iminência da morte revelam uma nova dimensão da coragem: enfrentar o medo e os desafios com um propósito maior, que vai além de suas aspirações. Isso tudo se torna muito claro ao fim da jornada quando o personagem está diante de uma das escolhas mais difíceis de sua vida. Para não perder a graça, dando spoiler sobre o que irá acontecer, posso adiantar que o Gato de Botas escolhe lutar por algo maior do que ele mesmo. Na jornada o felino é levado a refletir sobre o sentido da vida, percebendo que o que lhe resta é a coragem de enfrentar seus medos e desafios mais profundos. Neste ponto lembrei imediatamente que esta atitude reflete a famosa frase do General George S. Patton: “Coragem é medo segurando um minuto a mais.” A verdadeira coragem, assim demonstrada, não é a ausência de medo, mas a determinação de agir corretamente, mesmo quando o medo é paralisante.
No filme do diretor Joel Crawford, a temperança também é apresentada como uma das virtudes em que o Gato de Botas é confrontado ao longo de sua jornada. Inicialmente levado por desejos e impulsos, ele vive sem considerar os limites ou a necessidade de autocontrole. Sua transformação o força a adotar uma postura de moderação, aprendendo a equilibrar seus impulsos com a razão. Esta virtude, segundo Aristóteles, é vital para alcançar a harmonia interior e o equilíbrio nas ações, algo que o Gato de Botas demonstra ao ajustar seu comportamento e adotar um estilo de vida mais equilibrado e consciente.
A narrativa também oferece uma reflexão sobre a justiça. No começo, o Gato de Botas é centrado em si mesmo, negligenciando as implicações de suas ações sobre os outros, com certa prepotência. Sua nova perspectiva sobre a vida o leva a valorizar a justiça, não como uma ideia abstrata, mas como uma prática diária que envolve tratar os outros com respeito. O Gato aprende que a justiça muitas vezes se manifesta em atos de coragem e sacrifício, mesmo quando envolvem grandes riscos.
Além dessas virtudes, o filme destaca a amizade como um valor fundamental. A inesperada amizade do Gato de Botas com um cão revela a importância das conexões verdadeiras e da confiança mútua. Aristóteles descreve a amizade como uma das formas mais nobres de virtude, um vínculo que promove o bem-estar mútuo e a compreensão. E é exatamente este pequeno personagem canino, inicialmente sem valor e sem uma personalidade forte, que acaba por despertar no Gato o valor da lealdade e da solidariedade, elementos essenciais para qualquer vida virtuosa.
“O Gato de Botas 2” nos oferece mais do que uma aventura emocionante; é um espelho que reflete a importância das virtudes na superação dos desafios da vida. Assim como o Gato de Botas encontra um novo propósito e força através da prudência, coragem, temperança e justiça, cada um de nós pode aprender a ser um protagonista em nossa própria jornada.
Talvez as crianças não percebam tanta riqueza no filme, mas cabe à nós provocar uma reflexão nos pequenos para que compreendam os valores apresentados na história do gato e de seus amigos.
As virtudes são bússolas que orientam nossas escolhas e nos capacitam a enfrentar o pessimismo com resiliência, construindo um mundo melhor e mais humano. Elas nos mostram que, com integridade e propósito, podemos ser agentes de mudança, transformando não apenas nossas próprias vidas, mas também aqueles que amamos e que temos por bem.
Fica a dica para assistir “O Gato de Botas 2” com os nossos pequenos nas férias. Além da história, a animação em si é uma obra de arte. Garanto que o filme não vai decepcionar!
Para saber mais
- Aristóteles – Ética a Nicômaco.
- Alasdair MacIntyre – Depois da Virtude.
- Josef Pieper – As Quatro Virtudes Cardeais.
- São Tomás de Aquino – Suma Teológica.
- Joseph Campbell – O herói de mil faces.
Jorge Quintão – IoP