O que é o amor?

Do caos à harmonia: a evolução do conceito de amor

A questão sobre o que é o amor desafia as mentes humanas, não é de hoje. Ao contrário da abordagem simplista e superficial encontrada no cinema, nas músicas, na mídia moderna, o amor é, na verdade, um conceito profundamente enraizado em tradições filosóficas, religiosas e científicas.

Não se trata apenas de uma emoção fugaz, mas de uma força que molda a ordem do universo, guia a busca pela verdade e organiza as relações humanas em um nível ético e moral. Neste primeiro artigo da série sobre o que é o amor, analisaremos o conceito de amor a partir da cosmogonia de Hesíodo, conectando suas ideias à filosofia de Platão, e, por fim, à visão de amor presente nos ensinamentos de Jesus Cristo.

A criação do universo na “Teogonia” de Hesíodo

A “Teogonia” (em grego: Θεογονία [theos, deus + gonia, nascimento]) é um dos textos fundadores da mitologia e cosmologia grega. Escrita entre os séculos VIII e VII a.C. por Hesíodo, o poema é constituído por 1022 versos em hexâmetros e tem como objetivo descrever a origem do mundo e das divindades. Esse mito cosmogônico narra o nascimento dos deuses e, em sua fase final, como esses seres se conectam aos humanos, dando origem aos heróis.

O poema, também chamado de “Genealogia dos Deuses”, começa com o surgimento do Caos, que representa o vazio primordial, uma desordem absoluta de onde tudo se origina. A partir do Caos, surgem os primeiros elementos fundamentais do universo: Gaia (a Terra), Tártaro (a escuridão primeva) e Eros (a atração amorosa). O nascimento de Eros é crucial, pois ele desempenha o papel de força unificadora e criadora, permitindo que o Caos seja transformado em Cosmos, ou seja, uma ordem harmoniosa e estruturada. O universo, então, começa sua progressiva gênese da desordem para a ordem.

Na “Teogonia”, Eros não é o deus do amor no sentido romântico ou sentimental que muitas vezes associamos hoje. Ele é a força responsável por gerar vida, impulsionar a criação e garantir a coesão entre os elementos fundamentais do universo. A partir dele, surgem de forma assexuada outras entidades primordiais, como Hemera (o dia), Nix (a noite), Urano (o céu) e Ponto (a água primordial). Com Eros, o caos não apenas gera vida, mas é estruturado, transformando a desordem em harmonia.

Esse aspecto do amor, como força cósmica unificadora e criadora, destaca a profundidade do conceito grego antigo em oposição à visão contemporânea que reduz o amor a um simples estado emocional. Em Hesíodo, o amor não é apenas uma emoção, mas uma força que gera ordem a partir do caos, um princípio estruturante do próprio universo.

Platão e a reinterpretação de Eros: do físico ao espiritual

Séculos depois de Hesíodo, Platão retomaria o conceito de Eros, mas daria a ele uma nova dimensão, aprofundando sua importância além da esfera cosmogônica. Em seu famoso diálogo “O Banquete”, Platão desenvolve a ideia de Eros como uma força de ascensão espiritual, em vez de apenas um princípio físico.

No diálogo, diversos personagens discutem a natureza do amor. Para Platão, Eros é muito mais do que o desejo carnal ou físico. Ele é o intermediário entre o mundo sensível (o mundo material e físico) e o mundo inteligível (o mundo das ideias e da verdade). O amor, portanto, torna-se uma busca pela beleza, sabedoria e verdade. Platão introduz a famosa metáfora da “Escada do Amor”, onde o indivíduo, inicialmente, ama o corpo físico de outra pessoa, mas progressivamente passa a amar a beleza de todas as formas, a beleza das almas, até que, finalmente, alcança o amor pela própria beleza em sua essência, que está diretamente ligada ao Bem.

O amor, para Platão, é uma força que nos impulsiona a transcender o plano material e buscar algo eterno, imutável e divino. Eros, aqui, não é apenas uma força que organiza o universo físico, como em Hesíodo, mas uma força que organiza a alma, guiando-a em direção à imortalidade e à verdade. O amor platônico é, assim, uma jornada intelectual e espiritual.

O paralelo entre Platão e Hesíodo é notável. Ambos veem o amor como uma força essencial, mas enquanto Hesíodo se foca na dimensão cósmica e criadora de Eros, Platão expande essa noção para incluir o desenvolvimento moral e espiritual do ser humano. O amor, na visão platônica, nos eleva, nos faz transcender a matéria e nos conecta com o mundo das ideias, onde reside a verdadeira sabedoria.

A visão cristã do amor

Os ensinamentos de Jesus Cristo, ainda que profundamente diferentes em contexto e propósito, também refletem uma visão elevada do amor, que transcende o físico e se torna um princípio universal. Nas escrituras cristãs, o amor é frequentemente descrito como a base da vida moral e ética. Jesus ensina que o amor ao próximo e a Deus é o mandamento mais importante, como em Mateus 22:37-39: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

O amor, como apresentado por Jesus, não é um sentimento temporário ou egoísta, mas sim uma força ética que une os seres humanos em um laço de compaixão e bondade. Ele é entendido como uma disposição contínua e profunda de servir, sacrificar e cuidar do próximo sem condições. Na visão cristã, o amor, conforme ensinado por Jesus, não se limita a emoções efêmeras ou ações ocasionais, mas se manifesta como um compromisso ético e moral abrangente. Este amor é um princípio fundamental que orienta o comportamento humano, estabelecendo um laço de compaixão e bondade que une as pessoas em uma rede de apoio mútuo e altruísmo. Ao enaltecer a importância de amar o próximo como a si mesmo, Jesus destaca que o verdadeiro amor é expressado por meio de ações concretas e desinteressadas, refletindo um profundo respeito pela dignidade e pelo bem-estar do outro. Este tipo de amor não apenas busca promover o bem-estar individual, mas fortalecer a coesão social e promover a justiça em uma comunidade. Neste sentido, o amor cristão se configura como uma força transformadora que transcende o egoísmo e promove a harmonia e a solidariedade entre os seres humanos.

Como em Hesíodo e Platão, o amor é visto como um princípio unificador e transcendente, mas, do ponto de vista cristão, ele assume uma dimensão profundamente prática e moral, guiando o comportamento humano.

O amor como força cósmica e ética

Olhando para as diferentes concepções de amor em Hesíodo, Platão e Jesus, podemos observar uma linha comum que atravessa essas tradições: o amor como força unificadora e transformadora. Em Hesíodo, Eros é a força que organiza o cosmos, enquanto em Platão, Eros guia a alma em direção à verdade e à beleza. Nos ensinamentos de Jesus, o amor se manifesta como um princípio ético, que regula as relações humanas e promove a harmonia social e espiritual.

Essa visão do amor como uma força que transcende o individual e o egoísta, unindo o cosmos, as almas e as pessoas, é um conceito profundamente enraizado nas tradições filosóficas e religiosas. Ao contrário da visão midiática contemporânea, que frequentemente trata o amor como algo superficial e sentimental, os grandes pensadores da antiguidade viram no amor uma força poderosa que organiza e eleva o indivíduo e a sociedade, como um guia para o sentido real da vida.

No próximo artigo, avançaremos para uma análise da visão de Aristóteles sobre o amor, com foco na amizade e nas virtudes.

Para saber mais

  • Hesíodo. Teogonia. Traduzido por Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991. Obra fundamental para compreender a origem mitológica dos deuses e a importância de Eros na criação do cosmos.
  • Platão. O Banquete. Traduzido por Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1973. Discussão clássica sobre a natureza do amor, abordando o conceito do amor platônico e a elevação da alma através do amor pela verdade e pela beleza.
  • Aristóteles. Ética a Nicômaco. Traduzido por Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Uma reflexão profunda sobre as virtudes, a amizade e o amor como elementos centrais para a vida ética.
  • Dodds, E.R. Os Gregos e o Irracional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2002. Estudo sobre a importância das emoções e da irracionalidade nas tradições e pensamentos gregos antigos, incluindo o amor.
  • Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Excelente referência para consultas rápidas sobre conceitos filosóficos, incluindo o amor na tradição ocidental.
  • Pereira, José Luiz Ames. Introdução à Filosofia de Platão. São Paulo: Loyola, 2005. Uma introdução clara à filosofia de Platão, com foco em seus diálogos sobre o amor e a natureza humana.

IoP

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