O que é o amor – Parte 3

Do prazer à vontade divina: a evolução do conceito de amor na filosofia ocidenta

Neste terceiro artigo de nossa série sobre o conceito de amor, continuamos nossa jornada através do pensamento ocidental, partindo das ideias já exploradas de Hesíodo, Platão, Aristóteles e Jesus Cristo. Agora, nos aprofundaremos nas visões de Epicuro, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, explorando como suas ideias se entrelaçam e evoluem ao longo do tempo.

A busca pelo equilíbrio: Epicuro e o amor como prazer moderado

Epicuro (341-270 a.C.) nos apresenta uma visão do amor que, à primeira vista, pode parecer contrastante com as ideias platônicas e aristotélicas discutidas em nossos artigos anteriores. Enquanto Platão via o amor como uma escada para o divino e Aristóteles o considerava uma forma de amizade virtuosa, Epicuro ancora sua concepção de amor na busca pelo prazer e pela ausência de dor.

No entanto, seria um erro interpretar o hedonismo epicurista como uma busca desenfreada por prazeres sensuais. Como A. A. Long e D. N. Sedley nos lembram em sua análise dos filósofos helenísticos, Epicuro definia o prazer não como uma indulgência excessiva, mas como “a ausência de dor no corpo e de perturbação na alma”. Esta definição nos leva a uma compreensão mais sutil e equilibrada do amor.

Para Epicuro, o amor, quando vivido de forma sábia, não é uma paixão turbulenta que perturba a alma, mas uma forma de amizade caracterizada pela tranquilidade e pelo prazer mútuo. Esta visão ressoa com a ideia aristotélica de amizade virtuosa, embora com um foco diferente. Enquanto Aristóteles enfatizava a virtude, Epicuro destacava a paz interior.

Martha Nussbaum, em sua análise da ética helenística, nos ajuda a entender como esta visão do amor se traduz na prática. Para Epicuro, um relacionamento amoroso ideal seria aquele em que ambos os parceiros buscam o bem-estar um do outro, não por um senso de dever ou virtude, mas porque a felicidade do outro contribui para sua própria tranquilidade e prazer.

Esta concepção de amor como uma busca compartilhada pela ataraxia (tranquilidade da alma) oferece uma interessante ponte entre as ideias mais elevadas de Platão e a ênfase na amizade de Aristóteles. Epicuro nos convida a ver o amor não como uma escada para o divino ou uma expressão de virtude, mas como um caminho para a paz interior e a felicidade mútua.

O amor divino: Santo Agostinho e a reorientação da vontade

Avançando alguns séculos, chegamos a Santo Agostinho (354-430 d.C.), cuja visão do amor marca uma significativa mudança de perspectiva. Agostinho, profundamente influenciado pelo cristianismo, reinterpreta o conceito de amor à luz da relação entre o humano e o divino.

Peter Brown, em sua biografia de Agostinho, nos oferece uma metáfora poderosa para entender a visão agostiniana do amor. Ele descreve o amor, na concepção de Agostinho, como uma “força gravitacional da alma”. Esta imagem nos ajuda a entender como Agostinho via o amor não apenas como um sentimento ou uma escolha, mas como uma orientação fundamental do ser humano.

Para Agostinho, todos os seres humanos são inevitavelmente atraídos por algo. A questão crucial é: para onde essa atração nos leva? É aqui que Agostinho introduz a distinção entre amor carnal (cupiditas) e amor divino (caritas). Oliver O’Donovan elabora sobre esta distinção, explicando que o amor carnal orienta a vontade para o eu e para as coisas criadas, enquanto o amor divino orienta a vontade para Deus e, através de Deus, para o próximo e para o eu de forma adequada.

Esta concepção de Agostinho pode ser vista como uma evolução das ideias platônicas sobre o amor como uma força ascendente. Enquanto Platão via o amor como um impulso que nos eleva do físico ao espiritual, Agostinho vê o amor divino como uma reorientação completa da vontade humana em direção a Deus.

Ao mesmo tempo, a ideia agostiniana de amor como uma força que nos atrai para algo fora de nós mesmos ecoa, de certa forma, o conceito de Eros como uma força cósmica unificadora que encontramos em Hesíodo. A diferença crucial é que, para Agostinho, o objeto último desse amor não é um princípio abstrato ou uma força impessoal, mas o Deus pessoal do cristianismo.

O amor como ato da vontade: São Tomás de Aquino

Chegamos finalmente a São Tomás de Aquino (1225-1274), cuja síntese do pensamento cristão com a filosofia aristotélica oferece uma nova perspectiva sobre o amor. Aquino, como nos explicam Norman Kretzmann e Eleonore Stump, vê o amor fundamentalmente como um ato da vontade, não uma paixão.

Esta concepção do amor como um ato volitivo pode ser vista como uma evolução natural das ideias de Agostinho. Se Agostinho via o amor como uma orientação fundamental da vontade, Aquino vai um passo além, definindo o amor como um ato deliberado de “querer o bem para alguém”.

Josef Pieper aprofunda esta ideia, explicando que para Aquino, o amor é uma afirmação ativa do outro, um “sim” existencial à sua existência. Esta visão do amor como uma escolha ativa e uma afirmação do outro nos remete à ética aristotélica da amizade, mas com uma dimensão adicional de intencionalidade e compromisso.

Interessantemente, a visão de Aquino sobre o amor como um ato da vontade pode ser vista como uma síntese das ideias que exploramos até agora. Ela incorpora elementos da busca epicurista pelo bem-estar mútuo, da orientação agostiniana da vontade para o divino, e da ênfase aristotélica na virtude e na amizade.

A evolução do conceito de amor: uma visão integrada

Ao traçarmos esta jornada de Epicuro a Aquino, passando por Agostinho, podemos ver uma fascinante evolução no conceito de amor. Como Anders Nygren observa em seu estudo comparativo, cada estágio dessa evolução representa não apenas uma mudança filosófica, mas uma resposta às necessidades espirituais e éticas de seu tempo.

Começamos com Epicuro, que nos oferece uma visão do amor como uma busca compartilhada pela tranquilidade e pelo prazer moderado. Esta perspectiva, embora muitas vezes mal compreendida, nos convida a ver o amor como um caminho para a paz interior e a felicidade mútua.

Com Agostinho, o conceito de amor é elevado ao plano divino. O amor se torna uma força fundamental que orienta toda a existência humana, seja em direção ao divino (caritas) ou ao mundano (cupiditas). Esta visão nos desafia a considerar o amor não apenas em termos de relacionamentos humanos, mas como nossa orientação fundamental em relação à realidade última.

Já para São Tomás de Aquino, o amor é redefinido como um ato deliberado da vontade. Esta concepção nos convida a ver o amor não apenas como um sentimento ou uma orientação, mas como uma escolha ativa e um compromisso contínuo com o bem do outro.

O Amor como força transformadora

Ao refletirmos sobre esta jornada através do pensamento ocidental sobre o amor, somos lembrados da profundidade e complexidade deste conceito aparentemente simples. De Hesíodo a Aquino, passando por Platão, Aristóteles, Jesus e Agostinho, vemos o amor sendo constantemente reinterpretado e expandido.

O que emerge desta análise não é uma definição única e definitiva do amor, mas um rico tapete de ideias interconectadas. Vemos o amor como uma força cósmica, uma escada para o divino, uma expressão de virtude, um caminho para a paz interior, uma orientação fundamental da alma e um ato deliberado da vontade.

Ao buscar pela paz, liberdade e prosperidade, as diversas concepções do amor oferecem recursos valiosos para repensar nossas relações pessoais e sociais. Como Martha Nussbaum sabiamente observa, o estudo histórico do amor não é um mero exercício acadêmico, mas uma oportunidade de enriquecer nossa compreensão e, potencialmente, viver vidas mais plenas e éticas.

À medida que continuamos nossa própria jornada de compreensão e expressão do amor, somos convidados a considerar como estas diversas perspectivas podem informar e enriquecer nossa própria experiência. O amor, em toda sua complexidade e profundidade, permanece uma força central em nossas vidas, capaz de transformar não apenas nossos relacionamentos pessoais, mas também nossas comunidades e nosso mundo.

Para saber mais

  1. Hesíodo. “Teogonia”. Uma obra fundamental para compreender a visão grega antiga sobre o amor como força cósmica.
  2. Platão. “O Banquete”. Um diálogo clássico que explora as diferentes facetas do amor e sua capacidade de elevar a alma.
  3. Epicuro. “Carta sobre a Felicidade”. Oferece insights sobre a busca do prazer moderado e da paz interior.
  4. Santo Agostinho. “Confissões”. Uma obra autobiográfica que reflete profundamente sobre o amor divino e humano.
  5. São Tomás de Aquino. “Suma Teológica”. Embora seja uma obra extensa, as seções sobre o amor oferecem uma perspectiva única sobre o amor como ato da vontade.
  6. C.S. Lewis. “Os Quatro Amores”. Uma exploração moderna dos diferentes tipos de amor, baseada nas tradições clássica e cristã.
  7. Erich Fromm. “A Arte de Amar”. Uma análise psicológica e filosófica do amor no contexto da sociedade moderna.

IoP

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