Como corretamente diz o ditado, a intimidade pode gerar desprezo, mas também pode gerar algum tipo de sonolência ou tédio.
Aquelas pessoas que nunca conheceram outro arranjo fora daquele em que vivem — mesmo que vivam em um arranjo extraordinariamente problemático — tendem a não perceber nenhuma anomalia ao seu redor. No mínimo, são incapazes de relacionar causa e consequência. É como se fossem zumbis que caminham por aí indiferentes às coisas ao seu redor.
Essa é exatamente a postura das pessoas de hoje em relação ao Estado.
Elas sempre conheceram o Estado como ele é, e o veem como um fato consumado, como algo natural. Elas encaram o Estado como encaram o tempo: haja chuva ou sol, tempestade com raios e trovões ou uma agradável brisa de primavera, ele sempre se manifesta, e não há nada que você possa fazer contra. Trata-se de um aspecto da própria natureza. Mesmo quando ele se mostra destrutivo, sua destruição é vista como algo semelhante a “atos de Deus”.
Essa nossa postura conformista em relação ao Estado ocorre não porque tal tipo de comportamento esteja predisposto em nossos genes, mas sim porque nossas condições de vida e nosso longo histórico de aceitação a este arranjo nos predispõem a encará-lo desta maneira resignada.
Já aquelas pessoas que chegaram a viver sob outros arranjos reagiram a tentativas de imposição de um Estado de maneiras bem distintas. Foi somente quando populações humanas desenvolveram a agricultura e passaram a se estabelecer em localidades fixas, que a humanidade se tornou mais condescendente com a dominação estatal.
Durante aquele período de tempo vastamente mais longo em que a humanidade era nômade e vivia em pequenos bandos que praticavam a caça e a coleta, o Estado era um arranjo impossível: as pessoas não tinham praticamente nenhuma espécie de riqueza não-perecível que podia ser espoliada pelo Estado, e se alguém tentasse impor algo semelhante a um domínio estatal sobre um bando, seus membros simplesmente sairiam daquela localidade, abrindo o máximo de distância possível entre si próprios e aqueles exploradores, evitando assim as depredações desta tentativa de criação de um Estado.
Para ver relatos históricos sobre isso, leia o livro The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia, de James C. Scott.
No entanto, ao longo dos últimos 5.000–10.000 anos, para praticamente todos os seres humanos do mundo, o Estado sempre existiu e sempre esteve presente com suas depredações e abusos dos direitos humanos. Seu poder de dominar, subjugar e espoliar seus súditos é cuidadosamente sustentado pela sua destreza em explorar os medos humanos, dentre eles o medo dos indivíduos em relação ao próprio Estado e a outras ameaças à vida e à integridade, contra as quais o Estado jura que irá nos proteger. (Nessa postura, o Estado em nada se difere daquelas gangues de bairro que extorquem pessoas em troca de “proteção”.)
Em todo caso, praticamente todos os indivíduos se tornaram totalmente incapazes de sequer imaginar como seria a vida sem um Estado.
Já aqueles poucos que se mostraram capazes de se libertar dessa condição hipnótica e vergonhosamente submissa em relação ao Estado se fazem duas perguntas:
1) Quem essas pessoas — a saber, os cabeças do Estado, sua guarda pretoriana, seus bajuladores e seus megaempresários protegidos no setor privado — pensam que são para nos tratar dessa maneira?
2) Por que praticamente todos nós aceitamos receber esse ultrajante tratamento do Estado?
Essas duas simples perguntas podem facilmente se tornar — e de fato formam — o cerne de vários livros, artigos e manifestos. Embora algo semelhante a um consenso jamais tenha ocorrido, parece ser pouco controverso dizer que as respostas para a primeira pergunta têm muito a ver com o amplo predomínio de pessoas arrogantes e mal intencionadas que usufruem uma vantagem comparativa em coagir e confundir suas vítimas. Tendo de escolher entre enriquecer por meios econômicos (pela produção e pelas trocas voluntárias) ou por meios políticos (roubo e extorsão), os membros das classes dominantes sempre optaram decisivamente pela segunda alternativa.
O papa Gregório VII (1071-85), o líder da momentosa Revolução Papal que se iniciou durante seu papado e continuou durante os cinquenta anos seguintes (durando ainda mais na Inglaterra), não mediu palavras quando escreveu (como citado pelo estudioso Harold Berman): “Reis e príncipes obtiveram seus poderes porque seus conterrâneos eram homens ignorantes de Deus; e se elevaram acima destes seus conterrâneos por meio da soberba, da espoliação, da deslealdade e do homicídio — em suma, por todos os tipos de crime –, sempre instigados pelo Demônio, o príncipe deste mundo. São homens cegados pela ganância e insuportáveis em sua insolência”.
É sim possível que alguns líderes políticos sinceramente acreditem possuir uma justificativa virtuosa para impor sua dominação sobre seus conterrâneos — e mais do que nunca nos dias de hoje, em que políticos populistas juram que uma vitória eleitoral equivale a uma consagração divina –, mas tal autoengano não altera em absolutamente nada a realidade da situação.
Quanto ao motivo de aceitarmos nos submeter aos ultrajes do Estado, as respostas mais persuasivas têm a ver com o medo que temos do Estado (em conjunto com o temor da responsabilidade própria que muitos sentem).
Há aquela apreensão de ser o desafiante solitário, que no momento decisivo não contará com o apoio e a solidariedade das outras vítimas, as quais acabarão se omitindo e não juntarão forças. E talvez ainda mais importante, há aquela “hipnose” ideológica (como explicada por Leon Tolstoi) que impede que a maioria das pessoas seja capaz de imaginar a vida sem o Estado ou seja incapaz de entender que o Estado reivindicar imunidade ao mesmos códigos morais que vinculam todos os outros seres humanos é uma impostura absurda.
Se um indivíduo comum não pode moralmente roubar, espoliar, sequestrar, fraudar ou matar, os indivíduos que compõem o Estado também têm de estar sujeitos a essas mesmas proibições.
Igualmente, indivíduos comuns não podem delegar ao Estado as tarefas de roubar, espoliar, sequestrar, fraudar ou matar simplesmente porque tais indivíduos não têm tais diretos que seus conterrâneos; portanto, tais tarefas não podem ser terceirizadas. (Um simples lobby de poderosos empresários pedindo ao Estado mais protecionismo já configura uma intolerável terceirização da espoliação.)
Assim como Tolstoi, vários escritores e pensadores reconheceram que as classes dominantes se esforçam incansavelmente para incutir em suas vítimas uma ideologia que santifique o Estado e suas ações criminosas. Sob esse prisma, é inegável que, historicamente, vários Estados foram extremamente bem-sucedidos nessa empreitada. Sob o regime nazista, vários cidadãos alemães pensavam ser livres, assim como vários cidadãos das democracias ocidentais de hoje também pensam ser livres.
A capacidade de uma ideologia cegar pessoas e deixá-las propensas à Síndrome de Estocolmo parece não ter limites, embora um regime como o da URSS, que mantinha as pessoas na persistente pobreza, pode descobrir que suas tentativas de produzir encanto ideológico em suas vítimas irá, ao final, gerar retornos cada vez mais decrescentes.
Portanto, uma astuta — e em contínua mudança — combinação de força arrogante e fraude insolente pode ser vista como sendo o principal ingrediente utilizado pelo Estado em seus multifacetados esforços para induzir sonolência em suas vítimas. É claro que uma certa dose de cooptação acrescenta um tempero especial à mistura, de modo que todos os Estados se esforçam para presentear suas vítimas com um pedaço do pão que ele próprio roubou delas.
Em troca desta graciosa benevolência, as vítimas se tornam profundamente agradecidas.
Robert Higgs é scholar adjunto do Mises Institute, é o diretor de pesquisa do Independent Institute
Fonte: Mises Institute