Quatro perguntas a serem feitas em qualquer discussão sobre desigualdade

Sem essas quatro questões, qualquer discussão se torna puramente emotiva, ideológica e estéril

Já escrevi vários artigos e concedi muitas entrevistas contestando a popular afirmação de que a desigualdade está piorando. Os artigos contêm uma ampla variedade de dados (muitos podem ser encontrados aqui e aqui), mostrando que muitas das afirmações sobre essa “desigualdade crescente” de renda ou estão erradas, ou são exageradas ou ignoram outras evidências.

Entretanto, o que eu quero aqui é, especificamente, focar em quatro questionamentos que devem estar no centro de qualquer discussão sobre desigualdade.

Primeira pergunta: estamos falando de desigualdade ou de pobreza?

Com frequência, esses dois problemas se confundem nesse tipo de discussão.

Pobreza diz respeito às condições absolutas em que alguém se encontra. Tem comida? Acesso a água potável? Habitação? Trabalho? Seus filhos podem frequentar uma escola ou se veem forçados a trabalhar? Os critérios são muitos.

Já desigualdade é uma variável relativa, que nada diz sobre as condições absolutas de vida. Para saber se um país é desigual, é preciso comparar seus habitantes mais ricos e mais pobres e ver a distância entre eles. Um país que tenha uma pequena parcela de milionários e o restante da população passe fome é muito desigual. Já um onde todos passem fome é igualitário. A condição objetiva dos pobres em ambos, contudo, é a mesma.

Igualmente, se os mais pobres viverem como milionários, e os mais ricos sejam uma pequena parcela de trilionários, a desigualdade é grande.

As duas coisas, pobreza e desigualdade, se confundem facilmente, de modo que muita gente que se preocupa com a pobreza (com quem não tem, por exemplo, acesso a saneamento básico ou a educação) acaba falando de desigualdade: da diferença entre os mais ricos e os mais pobres. E essa confusão muda a maneira de pensar: pobreza e desigualdade acabam se tornando a mesma coisa, de modo que o melhor remédio contra a pobreza seria a redução da desigualdade, o que via de regra significa tirar de quem tem mais e dar para quem tem menos.

Consequentemente, aqueles que se dizem preocupados com a desigualdade frequentemente começam a discorrer sobre como a situação está ruim para os mais pobres. Aparentemente, tais pessoas presumem que uma desigualdade crescente deve significar que os ricos estão enriquecendo e os pobres, empobrecendo.

Mais especificamente, alguns parecem acreditar que os pobres estão mais pobres porque os ricos estão mais ricos. Isto é, eles supõem que a economia seja um jogo de soma-zero, de modo que, se alguns estão mais ricos, esta opulência só pode ter vindo dos pobres.

Sendo assim, limpe o terreno, esclareça os termos e eleve o nível da conversa. Certifique-se de que todos estejam falando a mesma coisa. Porque se estivermos discutindo a pobreza, a evidência esmagadora é a de que, globalmente, a miséria se reduziu dramaticamente nos últimos 25 anos.

Segunda pergunta: estamos falando de desigualdade de renda, de riqueza ou de consumo?

Aqueles preocupados com desigualdade costumam confundir renda e riqueza nessas discussões. Mesmo este famoso vídeo comete esse deslize. Ele começa apresentando dados sobre riqueza, mas, várias vezes ao longo da apresentação — incluindo uma longa discussão a respeito de um gráfico — ele se refere ao salário das pessoas. Salário é renda, não riqueza.

Riqueza se refere à soma de nossos ativos (dinheiro, imóveis, terras, carros e outros bens) menos passivos (dívidas em geral e contas a pagar). A riqueza é um estoque.

Já renda é a variação líquida de nossa riqueza em um dado período de tempo, seja porque ganhamos um salário, um dividendo de uma ação, juros de uma aplicação, ou aluguel do inquilino. A renda é um fluxo.

É possível ter uma grande riqueza, mas uma renda baixa, como uma pessoa idosa que vive só de sua magra pensão ou dos juros de sua poupança, mas que tem uma casa totalmente quitada.

Inversamente, alguém pode ter alta renda e baixa riqueza financeira. Por exemplo, alguém que tem um alto salário, mas gasta imediatamente tudo em bens de consumo.  

Os dados serão diferentes dependendo de estarmos falando de riqueza ou de renda. Seja claro nesse tópico.

Desigualdade de consumo é uma terceira possibilidade. Trata-se da diferença entre o que ricos e pobres podem consumir. As evidências disponíveis sugerem que a desigualdade de consumo é muito menor que a de renda ou riqueza, principalmente nos países mais desenvolvidos. Os lares dos americanos pobres possuem quase todas as coisas que os lares ricos, ainda que de qualidade mais baixa. E a distancia entre ricos e pobres neste quesito se estreitou nas últimas décadas. Uma vez que, em última análise, é o que consumimos o que interessa, essa é uma questão que tem de ser deixada clara em eventuais discussões.

Como dito neste artigo: a riqueza de Bill Gates deve ser 100.000 vezes maior do que a minha. Mas será que ele ingere 100.000 vezes mais calorias, proteínas, carboidratos e gordura saturada do que eu? Será que as refeições dele são 100.000 vezes mais saborosas que as minhas? Será que seus filhos são 100.000 vezes mais cultos que os meus? Será que ele pode viajar para a Europa ou para a Ásia 100.000 vezes mais rápido ou mais seguro? Será que ele pode viver 100.000 vezes mais do que eu?

O capitalismo que gerou essa desigualdade é o mesmo que hoje permite com que boa parte do mundo possa viver com uma qualidade de vida muito melhor que a dos reis de antigamente.  Hoje vivemos em condições melhores do que praticamente qualquer pessoa do século XVIII.

Terceira pergunta: e a mobilidade de renda?

Os que se preocupam com a desigualdade frequentemente pontificam como se os ricos, que estão ganhando cada vez mais, e os pobres, que estão ganhando cada vez menos, fossem sempre os mesmos, ano após ano.

Eles veem aquelas estatísticas que mostram que os 20% mais ricos detêm hoje uma fatia da renda nacional maior do que 30 anos atrás, ao passo que os 20% mais pobres detêm uma fatia menor. Daí, concluem que esses ricos são exatamente os mesmos, e que eles ficaram ainda mais ricos; e que os pobres são exatamente os mesmos, e que eles ficaram ainda mais pobres.

Muito bem.

Sobre os pobres terem ficado mais pobres, esta é uma conclusão que, como já dito, simplesmente não se sustenta. Os pobres enriqueceram nos últimos anos (veja o gráfico 1 deste artigo).

Falemos então sobre a mobilidade de renda, que é o que está sendo realmente ignorado. Comparações entre dois anos separados entre si por décadas são retratos estáticos de um processo dinâmico. O que essas comparações realmente dizem é que “aqueles que eram ricos no ano X detinham Y% da renda nacional; e aqueles que são ricos no ano X + 25 — pessoas completamente diferentes daquelas do ano X — detêm Z% da renda nacional”.

Em outras palavras, as pessoas e famílias que abrangem “os ricos” muda ano a ano. E o mesmo ocorre para os 20% mais pobres.

Uma fácil comprovação disso é você olhar a lista de bilionários da Forbes, publicada anualmente. Praticamente todas as pessoas que figuravam na lista em 1987 — primeira vez em que ela foi publicada — não mais estão nela hoje.

Há um grande e controverso debate entre economistas sobre quão fácil ou difícil é para uma pessoa que é pobre em um dado ano ter maiores fluxos de renda nos anos seguintes. Este é o debate. Que a mobilidade de renda realmente existe, isso não mais está em questão.

A conclusão é que você não pode falar sobre desigualdade sem, ao menos, discutir o grau de mobilidade. Se o que incomoda as pessoas no que diz respeito à desigualdade é a suposição de que os pobres estão estagnados ou empobrecendo, então, explorar o grau em que isso é realmente verdade é essencial à discussão.

Quarta pergunta: quais, exatamente, são os problemas causados pela desigualdade?

Se você já conseguiu esclarecer o que todos os debatedores pensam sobre as três primeiras questões, faça então a pergunta: se a pobreza está se reduzindo e, mesmo na atual condição, os pobres ainda conseguem manter um padrão de consumo decente, o que, exatamente, há de errado com a (crescente) desigualdade?

Pela minha experiência, uma resposta comum é que, mesmo se os mais pobres estiverem enriquecendo, o aumento ainda maior na prosperidade dos ricos confere a estes um acesso injusto ao processo político. Os super-ricos transformarão seu poder econômico em poder político, frequentemente de maneira que redistribui recursos para eles próprios e seus amigos.

Esta, obviamente, é uma preocupação legítima, mas observe que a conversa, subitamente, mudou da desigualdade em si para os problemas dos conchavos políticos, do capitalismo de estado (ou “capitalismo de quadrilhas“) e do fato de haver um estado com poder suficiente para se criar tais distorções.

Para atacar esse arranjo estatal corporativista e reduzir a capacidade dos ricos de transformar riqueza em poder político há várias soluções que não envolvem a redistribuição forçada de renda — a qual, no final, faz com que ainda mais dinheiro vá para políticos e seus mecanismos.

Aqueles que levantam essa preocupação estão, na prática, reclamando apenas do compadrio gerado pelo estado, não da desigualdade em si. A fonte do problema é o estado, cheio de benesses e de favores a serem distribuídos, o qual, indiscutivelmente, se tornaria ainda mais poderoso e distorcivo caso os preocupados com a desigualdade tivessem suas políticas favoritas aprovadas.

Por fim, mesmo aqueles que são céticos em relação aos argumentos de que a desigualdade seja problemática, podem concordar que tem havido alguma redistribuição de riqueza do pobre para o rico nas últimas décadas. Isso se dá, majoritariamente, por causa das políticas do governo que favorecem quem já está próximo ao poder, seja devido aos exorbitantes salários que funcionários públicos de alto escalão recebem, seja por causa de sua política de expansão de crédito subsidiado para grandes empresas, seja por causa de suas políticas protecionistas que protegem as grandes indústrias criando uma reserva de mercado e impedindo os pobres de comprar bens mais baratos do estrangeiro, seja por causa de sua política fiscal que, ao incorrer em déficits orçamentários, aumenta a riqueza dos compradores dos títulos públicos.

Não nos esqueçamos também da exigência de licenças profissionais e dos encargos sociais e trabalhistas que dificultam a obtenção de trabalho pelos mais pobres, que costumam ser menos qualificados e não justificam o preço exigido como mínimo a ser pago por sua mão-de-obra.

Há, ainda, tentativas governamentais de regular e até mesmo banir o Uber, o Lyft, o AirBnB e todas essas empresas da chamada “economia compartilhada”. Essas são, justamente, as melhores alternativas para alguém que não está encontrando oportunidades conseguir uma fonte de renda, já que é a área da economia menos controlada pelo governo que se conhece.

Por fim, vale ressaltar que é o estado quem impede que os moradores de favelas obtenham títulos de propriedade, os quais poderiam ser utilizados como garantia para a obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas e se integrar ao sistema produtivo.

Todas essas políticas são problemáticas justamente porque aumentam a desigualdade e a pobreza de forma artificial. Com efeito, uma discussão muito mais interessante incluiria qual o papel dessas políticas estatais na criação das desigualdades artificiais em oposição às desigualdades naturais, que são aquelas que surgem espontaneamente no mercado em decorrência da maior aptidão de cada indivíduo.

Conclusão

Novamente, os leitores interessados em dados devem consultar as duas monografias citadas no primeiro parágrafo do artigo. No entanto, mesmo sem os dados, essas são as quatro perguntas que valem a pena ser feitas numa conversa sobre desigualdade se você quer realmente chegar ao cerne do que está em jogo e persuadir aqueles preocupados com a crescente desigualdade a ver a questão por um ângulo diferente.


Steve Horwitz é professor de economia na St. Lawrence University e autor do livro Microfoundations and Macroeconomics: An Austrian Perspective.

Fonte: Mises Brasil

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