Dias atrás, fui convidado à casa de um jovem casal. Pais recentes, estavam visivelmente exaustos. Enquanto o bebê dormia no colo da mãe, o pai, com um café morno nas mãos, me lançou a pergunta que tantas vezes ouvi, embora formulada de maneiras distintas:
— Por onde começamos a educar nosso filho?
Não era uma pergunta sobre métodos, escolas ou modismos. Era mais profundo: eles queriam entender como formar o caráter da criança. Como prepará-la não apenas para os vestibulares da vida, mas para a própria vida em si.
Sorri, respirei fundo e, antes de dizer qualquer coisa, observei ao redor: brinquedos no chão, mamadeiras na pia, o som baixo de uma canção de ninar. Havia desordem, mas também havia amor. Faltava apenas um elemento invisível, que muitos confundem com controle: a rotina.
A rotina como oficina da alma
Expliquei que, apesar de parecerem simples, os gestos repetidos da infância — como arrumar a cama, agradecer à mesa ou guardar os brinquedos — são os primeiros passos de uma caminhada interior. Cada repetição, embora cansativa para os pais, é um tijolo que constrói o alicerce da alma.
Eles estranharam. “Mas isso não engessa a criança?”, perguntaram.
Foi então que apresentei o paradoxo que governa a liberdade: “Somente quem aceita limites é realmente livre.”
Não há liberdade no caos, apenas impulso. E o impulso é um tirano que finge dar prazer, mas escraviza pela inconstância.
O desejo: senhor ou servo?
Falei-lhes sobre algo pouco conhecido, embora antigo como o mundo:
Quando a criança repete uma ação virtuosa, seu corpo cansa, mas sua alma acorda. O desejo, inicialmente rebelde, começa a se submeter à razão. E, com o tempo, essa obediência gera prazer verdadeiro — o prazer do bem praticado, por meio do orgulho de ser útil, de participar da rotina da família.
Parece estranho: a virtude, quando habituada, deixa de ser esforço e se torna alegria.
Poucos sabem que, segundo os antigos, o homem virtuoso não apenas age corretamente, mas sente prazer em fazer o bem — porque moldou seus desejos com inteligência e repetição.
É nisso que a rotina toca o mais profundo da ética: ela treina a vontade para que o bem se torne natural. E o bem natural é liberdade em sua forma mais pura.
O tempo da infância: terra boa para semear
Comentei que a primeira infância é como um campo recém-cultivado: tudo o que se lança ali germina. A repetição — essa heroína discreta — é a ferramenta que transforma uma inclinação passageira em disposição permanente.
As virtudes, afinal, não são sentimentos. São forças adquiridas.
E se adquirem fazendo, repetindo, tentando — mesmo quando falha.
Na rotina, a criança aprende:
• prudência, ao antecipar o que vem;
• coragem, ao enfrentar o desconforto;
• temperança, ao esperar o tempo certo;
• justiça, ao cumprir seu dever mesmo quando ninguém vê.
E, entre todas essas, destaquei uma joia: a temperança. Porque quem domina seus desejos, domina a si mesmo. E quem domina a si mesmo, torna-se capaz de governar o mundo com sabedoria.
Rotina: o amor em forma de estrutura
A mãe, emocionada, comentou que às vezes se sente culpada por exigir demais, por insistir nos horários, por dizer “não”.
Disse a ela, com convicção:
“Rotina não é rigidez. É amor com forma. É presença que estrutura. É liberdade que nasce da ordem.”
E acrescentei: educar não é proteger da dor, mas preparar para enfrentá-la com coragem e clareza. Rotina é o treino invisível para as grandes batalhas da alma.
O fruto do invisível
Quando me despedi, deixei-lhes um último pensamento:
“A criança que aprende a arrumar a própria cama, um dia aprenderá a arrumar a própria vida.”
E mais do que isso: saberá esperar, decidir, sacrificar e perseverar.
Talvez ninguém aplauda uma criança por escovar os dentes todos os dias.
Mas será essa mesma criança que, anos depois, terá forças para dizer “não” ao vício, “sim” à verdade, “agora não” ao prazer imediato e “ainda sim” ao bem.
Esses são os verdadeiros protagonistas do mundo: os que treinaram o espírito nas pequenas batalhas da rotina — e por isso estão prontos para as grandes.
Para saber mais:
- Aristóteles. Ética a Nicômaco.
- C.S. Lewis. Cristianismo Puro e Simples.
- Comte-Sponville, A. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
- Instituto O Pacificador. Virtudes e Protagonismo para o Bem
- Instituto O Pacificador. Protagonismo 2024
- A importância das virtudes para a excelência moral
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