Nota do editor
Embora trabalhe com números econômicos ainda de 2019, o artigo a seguir, publicado naquele ano, readquire nova e crucial importância em decorrência do atual debate sobre reforma tributária.
A reforma que está sendo proposta é tão ruim que, desde que foi apresentada, importantes variáveis macroeconômicas que vinham melhorando — principalmente câmbio, juros longos e Ibovespa— subitamente apresentaram um grande revés (veja a seta indicando a data na figura do câmbio).
Mercados precificam hoje possíveis eventos futuros. Uma reforma tributária que termine por elevar ainda mais os impostos será obviamente ruim para a economia, e é por isso que essa piora já se reflete naquelas variáveis macroeconômicas.
Ainda dá tempo de reverter o estrago e melhorar, mas o tempo está ficando escasso.
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Em meu trabalho como analista financeiro, lido com números de empresas de todos os tipos e setores.
Ao longo da rotina de trabalho e das muitas planilhas e relatórios, os valores absolutos dos números quase chegam a se perder. Passamos muito tempo avaliando a rentabilidade dos ativos, a produtividade da operação, a gestão de capital de giro etc.
Já os impostos, aqueles números grandes nas cabeças e rodapés de todas as demonstrações financeiras, recebem atenção reduzida, pois são um “dado da realidade”, de modo que muito pouco se pode fazer para alterar seu valor e consequente efeito sobre o restante das contas.
Contudo, na última semana, uma demonstração financeira me deixou perplexo.
Eu estava avaliando as contas de um cliente. Sua empresa é uma indústria de beneficiamento de aço que está passando por maus bocados devido à situação econômica do país. Verifiquei que a firma havia faturado cerca de R$ 13 milhões no mês anterior. Deste total, algo em torno de R$ 3,7 milhões (28%) foram pagos apenas em impostos sobre vendas por meio das alíquotas de PIS, COFINS, IPI e ICMS.
Fiquei perplexo ao notar a quantidade de dinheiro que o estado levava antes mesmo de a empresa receber pelas vendas efetuadas.
Continuando a análise das contas, vi que, após o pagamento aos fornecedores, funcionários, prestadores de serviço e credores financeiros, sobrava muito pouco para o empresário em termos percentuais. Para ser mais específico, após o pagamento de todas as contas operacionais e de mais um esbulho estatal (IRPJ e CSLL), sobrava para o empresário algo em torno de R$ 400 mil.
O leitor pode pensar: “ah, mas R$ 400 mil por mês não é nada mal!”
Contudo, qualquer impressão de altos lucros cai por terra após se verificar que o montante equivale a apenas 3% de todo o faturamento da empresa.
Social(ismo)-democracia
Passei o resto daquele dia pensando no escândalo que aqueles números representavam.
Como é possível o estado levar, de boa, sem resistência, quase 30% do que a empresa produz, e sem que ele tenha tido qualquer participação nos riscos do empreendimento?
Eis a realidade: a social-democracia conseguiu um feito jamais realizado pelos socialistas originais: a tomada, ainda que furtiva, dos meios de produção.
Marx acreditava que, se o estado (no caso o estado-proletário) tomasse os meios de produção, o caminho para o comunismo paradisíaco estaria aberto. O que ele não previu é que a planificação econômica seria o prenúncio do colapso de recursos, o qual resultaria em desabastecimento generalizado, inanição, gastos irracionais, morte etc.
Mises previu, muito antes da queda do muro de Berlim, que nem o socialismo soviético nem qualquer outro modelo socialista poderiam prosperar em função de um único fator: a ausência do cálculo econômico sob o socialismo. Não há como existir cálculo econômico sem a propriedade privada dos meios de produção. E isso leva a uma alocação totalmente irracional dos recursos.
Cientes da impossibilidade da apropriação física dos meios de produção, os socialistas modernos (agora social-democratas) tiveram uma ideia brilhante: por que, em vez de tomar os meios de produção, não tomar apenas o resultado da produção?
Não poderia haver ideia mais genial. Se, em um estado socialista, alguém obtém renda por meio do aluguel de imóveis, os imóveis seriam confiscados e passariam a ser propriedade do governo. Já em um estado social-democrata, o governo permite que a propriedade continue a ser nominalmente de seu dono original, sendo confiscada apenas a riqueza produzida (o aluguel).
Este segundo arranjo é bem mais duradouro: tal modelo de confisco evita o risco de colapso que aflige o socialismo tradicional, já que, sendo os bens de capital privados, seus donos se esforçarão para maximizar os retornos e ainda se valerão de um sistema de preços relativamente livre para tomar suas decisões. Desta forma, o esbulho governamental é incomparavelmente mais eficiente e sustentável.
Não é desarrazoado dizer que o governo sempre atua para maximizar seu confisco, deixando para o produtor apenas o suficiente para que ele não desista da atividade, e assim continue gerando riqueza para ser confiscada pelo estado. Este era o caso do meu cliente.
Sim, um empresário que receba R$ 30, 40, 50 mil por mês está em condição muito superior ao restante da população em termos absolutos; porém, quando se compara o total efetivamente recebido com o volume de riqueza produzido, é possível sentir até pena do sujeito. No caso do meu cliente, o total levado pelo estado equivalia a 9,3 vezes o montante embolsado pelo empresário.
No entanto, ainda que o estado fique com a maior parte da produção, permanecer na atividade é melhor do que se tornar um assalariado.
O esbulho em números
Como dito, o total levado pelo estado na empresa do meu cliente equivalia a mais de 9 vezes o lucro dos sócios. Sendo assim, irei agora relatar o mesmo processo observado em algumas das empresas mais bem administradas do país.
Elas foram escolhidas para este exemplo por serem líderes em seus respectivos mercados e por possuírem em seus quadros alguns dos melhores profissionais disponíveis. As empresas escolhidas foram Ambev, Magazine Luiza e WEG. Todas elas são empresas com capital aberto em bolsa e seus balanços são divulgados na central de relacionamento com o investidor em seus respectivos sites.
Todos os dados são relativos apenas ao 1º trimestre de 2019, ou seja, não correspondem ao exercício completo (1 ano), mas apenas ao período compreendido entre 01/jan e 31/mar de 2019.
Ambev
A Ambev apresentou receita bruta de R$ 18,77 bilhões no 1º trimestre de 2019. Deste total, R$ 4,097 bilhões foram levados pelo estado na forma de impostos diretos sobre receitas.
Subtraídos os descontos sobre vendas (como devoluções e cancelamentos), a receita líquida da empresa passou a R$ 12,64 bilhões no trimestre.
No Brasil, assim como em boa parte dos países ditos “capitalistas”, o capital de terceiros é isento de tributação, ou seja, é possível deduzir do imposto de renda de pessoas jurídicas os valores gastos com juros pagos a terceiros (como bancos, fundos etc.). Apesar de não haver impostos sobre o capital em si, há cobrança de tributos sobre as transações. Na prática, a empresa não paga imposto sobre a utilização do recurso de terceiros, mas todas as vezes em que há transações deste tipo, o estado fica com um pedaço. A maior parte deste tributo é oriunda do chamado IOF.
No caso da Ambev, o estado levou R$ 53,9 milhões por meio deste imposto apenas no 1º Tri de 2019.
Após pagos os impostos sobre vendas e sobre operações financeiras, a empresa usará os valores restantes para pagar seus fornecedores, funcionários, prestadores de serviço etc.
Porém, após executados todos os pagamentos ainda haverá o IRPJ (imposto de renda sobre pessoas jurídicas) e a CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido). Só após pagos estes impostos é que os lucros líquidos serão contabilizados e poderão, então, ser distribuídos aos acionistas ou reinvestidos na operação da firma.
No caso da Ambev, o total gasto com IRPJ e CSLL no 1º trimestre de 2019 foi de R$ 632,4 milhões.
Somando-se todos os impostos pagos, temos:
Quando projetamos a demonstração de resultados da Ambev, vemos que, após o pagamento de todos os custos, despesas e impostos, a companhia obtém um lucro líquido de R$ 2.749,10 bilhões no trimestre. O montante pode parecer muito em termos absolutos; contudo, em termos relativos, ele corresponde a 14,65% da receita total auferida. São aproximadamente 15% de lucro contra 25% de espoliação estatal.
Deve-se ainda ressaltar que, no fechamento do trimestre, a Ambev possuía em ativos um total de R$ 96,9 bilhões. Ou seja, em termos comparativos, o retorno aos acionistas e credores no 1º trimestre de 2019 foi de 2,84%, ao passo que o retorno ao governo foi infinito, já que o estado não possui nenhuma ação da companhia e, como sabemos, a divisão por 0 (zero) é impossível, mas o limite de uma função cujo denominador tende a zero é o infinito.
Magazine Luiza
No caso da empresa Magazine Luiza, a receita bruta foi de R$ 5,3 bilhões no trimestre.
Em suas demonstrações, a empresa informou apenas o total de deduções da receita bruta, não fazendo distinção entre impostos e cancelamentos. Contudo, a estimativa do setor é de que 2% das vendas sofram cancelamentos ou devoluções. Sendo assim, estima-se que de, um total de R$ 984 milhões em deduções, R$ 877 milhões sejam relativos a impostos sobre vendas.
Temos também que após a apuração dos resultados, a empresa entregou ao governo R$ 63,7 milhões via IRJP e CSLL, totalizando R$ 941,6 milhões em impostos pagos no 1º trimestre.
Por meio da DRE da empresa, é possível verificar ainda que o resultado líquido, após o pagamento de todas as despesas e do esbulho estatal, os acionistas ficaram com R$ 138,6 milhões, algo em torno de 3,2% da Receita Líquida ou 2,61% da receita bruta.
Verifica-se ainda que a companhia Magazine Luiza possuía, no fechamento do trimestre, ativos totais de R$ 9,74 bilhões. Ou seja, o retorno ao acionista no trimestre foi de 1,42%, ao passo que, para o estado, o mesmo foi infinito, assim como no caso da Ambev.
WEG
No caso da WEG, a análise precisa levar em consideração que a empresa é um grande exportador, tendo mais de 50% da sua receita fora do Brasil.
Neste caso, é preciso enfatizar que a tributação de bens exportados é diferente, possuindo alíquotas bem menores que aquelas aplicadas aos bens consumidos no país. Mas, mesmo dentro de um regime tributário bem menos hostil (em relação às demais empresas), a WEG teve 10,4% de suas receitas confiscadas pelo estado já na 2ª linha da DRE.
Após contabilizados os resultados, a empresa ainda pagou R$ 24,2 milhões em IR e CSLL ao governo, tendo arcado com um total de R$ 371,5 milhões em tributos no 1º trimestre, o que equivale a 11,13% de suas receitas.
Em sua DRE, a WEG demonstra que foram realizados R$ 306,8 milhões em lucros durante o 1º trimestre. O montante equivale a 9,20% da receita bruta. A empresa apresentou ainda ativos totais de R$ 15,23 bilhões, fazendo o retorno ao acionista ser de 2,02% no trimestre contra, novamente um retorno infinito para o estado.
Em resumo
O total de tributos medidos por esta rasa análise capta apenas aquilo que é abatido das receitas e dos resultados contábeis das empresas. A realidade é bem pior, já que há também impostos indiretos sobre folha de pagamento, fundos específicos pagos ao governo, contribuição patronal e infinitas siglas que não caberiam aqui. No caso destes tributos, as empresas simplesmente os englobam nas contas de despesas e os compilam nas demonstrações sintéticas.
Sendo assim, para obter o valor real pago em tributos de todos os tipos, teríamos de analisar as demonstrações analíticas de cada empresa, o que exigiria muitas horas de trabalho.
Contudo, apenas para fins elucidativos, é possível ver que o estado supera (e muito) os empresários no que tange aos resultados das firmas. Em termos proporcionais, nos três casos avaliados, a WEG é a menos espoliada (já que possui tributação menor por ser exportadora) e a Magazine Luiza é a que mais entrega riqueza ao governo, já que este leva quase 7 vezes o volume de recursos destinado aos acionistas.
Cabe ressaltar ainda que os lucros não são completamente embolsados pelos sócios das empresas, já que, para se sustentar, a empresa precisa realizar constantemente novos investimentos em expansão. Na prática, é como se o governo tivesse direito à maior parte do leite sem ser o dono da vaca.
Logo, não é verdade que estejamos a caminho do socialismo. Não. Nós já estamos nele. A propriedade privada se tornou algo totalmente relativo, pois é o estado quem efetivamente fica com a maior parte dos retornos gerados por ela.
Se tal realidade — o estado ser detentor de grande parte dos retornos dos meios de produção — ainda não representa o socialismo, então dificilmente algo mais pode ser.
Mateus Vieira é analista financeiro, estuda e escreve sobre filosofia, economia e teologia.
Fonte: Mises Brasil