Uma das maiores derrotas do movimento intelectual pró-livre mercado foi permitir que suas ideias fossem categorizadas como sendo “opções de políticas públicas”. Tal concessão sugere que se deve deixar a cargo do estado — de seus gerentes e intelectuais pagos — decidir como, quando e onde a liberdade deve ser permitida. A implicação maior desse erro é fazer parecer com que a função da liberdade, da propriedade privada e dos incentivos de mercado é apenas permitir que haja um melhor gerenciamento da sociedade por parte do estado – ou seja, permitir que o regime funcione mais eficientemente.
Esse tipo de pensamento vem nos permeando há um bom tempo. Murray Rothbard, ainda nos anos 1950, observou que os economistas, mesmo aqueles favoráveis ao mercado, haviam se tornado especialistas em “como dar eficiência ao estado”. A diferença entre essa postura infeliz e aquela que utiliza uma retórica livre-mercadista para encobrir atrocidades estatais é mínima, sendo que esta última é certamente o objetivo final de todo o esquema.
Essa postura, por exemplo, foi o cerne da Revolução Reagan, que, em nome da liberdade, propôs cortes de impostos que na realidade visavam apenas aumentar as receitas do governo, como sugerido pela Curva de Laffer. Mas quem disse que o propósito da liberdade é garantir uma superabundância de fundos para o estado? E se esse aumento da receita não se concretizasse? Isso significaria que os cortes de impostos fracassaram? Até hoje, pessoas que se dizem defensoras resolutas do livre mercado seguem esse raciocínio: “Corte de impostos é bom porque, além de tudo, aumenta as receitas do estado!”
E, como já ficou mais do que claro, essa estratégia foi um desastre para a liberdade. As receitas dos governos em proporção ao PIB nunca foram tão grandes, assim como a sofisticação das maneiras de se recolhê-las. Ademais, hoje, quando o governo quer aumentar suas receitas, ele nem mais precisa se esconder sob esse manto oratório: ele simplesmente sai coletando mais receitas e encarcerando aquele que não se curvar. Tal foi o fracasso da “estratégia” acima.
Há vários outros exemplos atuais dessa horrenda concessão ao estado. Em alguns círculos “liberais”, as pessoas utilizam a palavra “privatização” não com o sentido de se retirar o governo de um aspecto particular da vida social e econômica, mas meramente com a intenção de terceirizar prioridades estatais para empresas privadas que possuam fortes conexões políticas.
Vouchers escolares e “privatização” da Previdência Social são os mais notórios exemplos em nível federal. Já em nível estadual e municipal, qualquer contrato governamental concedido, geralmente via propinas, a algum interesse privado é considerado “privatização”. Vemos isso quando se terceiriza serviços como coleta de lixo, saneamento básico, eletricidade e rodovias. Uma empresa privada ganha um monopólio concedido pelo estado e, daí pra frente, não mais precisa se preocupar com a concorrência. Um privilégio e tanto.
O que está em jogo é a própria concepção do papel da liberdade na vida econômica, política e social. Afinal, para nós, seria a liberdade apenas um recurso útil dentro da atual estrutura ou ela é uma alternativa genuína ao atual sistema político? Não se trata de uma simples contenda entre facções libertárias. O futuro do próprio livre mercado está em jogo.
São poucas as oportunidades de reforma que aparecem. E quando elas aparecerem, os libertários precisam estar à frente não apenas exigindo o serviço completo, como também alertando contra os perigos de certas concessões. O pior erro que nosso lado pode cometer é propagandear nossas idéias como sendo a melhor maneira de se obter os fins desejados pelo estado. Entretanto, foi exatamente essa abordagem — dizer que a economia de mercado é a melhor opção política dentre uma variedade de planos estatistas — que se tornou a dominante do nosso lado da cerca.
Pra começar, essa abordagem tipicamente leva a resultados infaustos no mundo real, como o fiasco da “desregulamentação”[*] do setor energético na Califórnia. Reformas parciais como essa podem gerar um sistema ainda pior do que o sistema que vigorava antes da reforma, além de acabar com a autoridade moral da livre iniciativa.
Outra observação contra reformas parciais foi feita por Ludwig von Mises:
Há uma tendência inerente a todos os governos em não reconhecer qualquer limitação às suas operações e em ampliar a esfera de seu domínio o máximo possível. Controlar tudo, não deixar espaço para que nada aconteça fora da interferência das autoridades – esse é o objetivo ao qual todos os regentes secretamente aspiram.
Mises
A única maneira de fugir desse problema é batalhando para eliminar todo o envolvimento do estado na vida da sociedade e da economia. Sem isso, simplesmente não há como evitar a miséria, a submissão e a ineficiência.
O que ocorreu com a Polônia é um ótimo exemplo. Após o colapso do comunismo, houve uma explosão de entusiasmo pela idéia de se ter uma economia de mercado. Porém, a transição foi tão mal feita — leia-se “muito planejada” — que, já em 2002, o estaleiro da cidade de Estetino (Szczecin) foi renacionalizado após os operários terem ameaçado rebeliões violentas pelo fato de os bancos terem parado de financiar um empreendimento deficitário, o que fez com que os cheques parassem de entrar.
Essa foi a primeira de várias reestatizações que viriam após o colapso do socialismo, empreendida em resposta ao que seria uma falência de rotina em uma economia de mercado. Após isso, o governo caiu nas mãos tanto de partidos abertamente de esquerda como de partidos socialmente conservadores e economicamente intervencionistas. Apenas em outubro de 2007, como consequência da estagnação econômica, um partido mais liberal ganhou as eleições para o parlamento. Isso vai impedir o retorno do socialismo? Em termos de política, é sempre um erro acreditar que o pior não pode acontecer.
Após 1989, a Polônia implantou uma série de reformas econômicas. Fábricas foram privatizadas. A maior parte das mais de 100.000 empresas municipais foi transferida para mãos privadas. A moeda foi estabilizada. Os preços foram liberados. O governo encorajou todos os tipos de empreendimentos. O resultado foi magnífico: investimentos estrangeiros abundantes e uma década de crescimento econômico respeitável.
Entretanto, assim como em outros países do Leste Europeu, a privatização estava longe de estar completa. As telecomunicações foram parcialmente privatizadas. O setor de saúde foi colocado em ordem, porém permaneceu em grande parte nas mãos do governo. Os sindicatos conseguiram manter enormes privilégios legais e não havia um mercado ativo que pudesse controlar as corporações. Os impostos continuaram muito altos (33 por cento). Um quarto da população ainda está empregada no setor público, conquanto recentemente haja uma tendência de queda.
Lamentavelmente, a Polônia não quis enxergar muito longe. A classe política quis utilizar os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental como modelos, o que levou à instituição de uma vasta gama de impedimentos regulatórios sobre a livre iniciativa, incluindo leis antitruste, regulamentações sobre a saúde e sobre a segurança do trabalho, regulamentações ambientalistas e várias leis trabalhistas. É verdade que essas regulamentações ainda eram mais brandas que as de seus países-modelo, porém a Polônia não poderia se dar ao luxo de permitir esse absurdo após todo o empobrecimento trazido pelo comunismo.
Muitas fábricas grandes e poderosas jamais foram tocadas pela privatização, por medo de que elas simplesmente falissem caso tivessem de competir em um livre mercado. Caso houvesse essa hipótese, a única atitude certa seria permitir que elas quebrassem, pois é absurdo queimar dinheiro do contribuinte para subsidiar empresas economicamente inviáveis (exatamente o que o governo dos EUA está fazendo com as montadoras). No setor marítimo, o governo polonês se comprometeu a não deixar que fábricas ineficientes quebrassem caso não mais conseguissem se manter. Tudo por medo dos sindicatos.
Intervenções para salvar empresas insolventes são ruins em seus próprios termos. Elas, ao contrário do que se imagina, não ajudam a economia. Elas apenas postergam o dia em que a empresa necessariamente irá ou se tornar uma entidade estatal ou quebrar por completo.
Na Polônia, a raiz do problema estava na própria palavra “privatização”. Um significado peculiar foi dado a essa palavra: “privatização” passou a significar que tudo e todos continuariam exatamente como antes, exceto que o controle agora estaria em mãos privadas, e não mais nas mãos do governo. O socialismo é possível afinal, desde que seja gerido pela iniciativa privada!
A mesma confusão predomina nos países ocidentais. Ouvimos alguns “liberais” dizerem que se “privatizarmos” as escolas públicas por meio de vouchers ou por quaisquer outros expedientes, elas se tornarão mais baratas de serem geridas e a qualidade do ensino irá aumentar. Também nos dizem que se “privatizarmos” a Previdência Social, ela irá trazer maiores retornos aos aposentados. Em ambos os casos, os “libertários” estatistas estão simplesmente dizendo: “O socialismo é possível, desde que gerido pela iniciativa privada!”
Realmente, se o setor educacional estivesse completamente sob mãos privadas — o que significa, obviamente, a abolição de um Ministério da Educação e de seus currículos obrigatórios –, nada igual ao atual sistema continuaria existindo. A maioria dos atuais coordenadores não teria emprego no novo sistema escolar. As próprias escolas se tornariam centros varejistas. A educação seria radicalmente descentralizada e ofertada pela livre concorrência. Escolas surgiriam e desapareceriam. Os salários de alguns professores provavelmente despencariam. Ninguém iria ter o direito a uma educação fornecida pelo estado. O estado poderia até exigir alguns conteúdos curriculares ou até mesmo determinar resultados mínimos, mas não obteria resposta alguma.
Uma enorme variedade de alternativas passaria a existir, mas seria raro que, entre elas, existisse o atual sistema de megaescolas que mais se parecem contêineres que abrigam milhares de pessoas. É claro que não podemos saber de antemão como seria esse setor e nem qual forma ele tomaria no futuro. Mas é exatamente esse o ponto. A proposta dos vouchers e todos os outros esquemas de terceirização sequer dariam ao livre mercado a chance de mostrar sua superioridade. Eles apenas gerariam mais aumentos nos gastos públicos e mais garantias estatais a um sistema já amplamente socialista.
O mesmo se aplica para a Previdência Social. Aqueles que dizem querer sua privatização estão simplesmente defendendo um sistema que em nada difere do atual. Seu dinheiro ainda continuará sendo roubado pelo estado. As pensões ainda continuariam sendo garantidas pelo estado. Aliás, você poderia até acabar pagando mais: uma parcela para os atuais aposentados e outra para financiar a sua própria conta “privada”. A única diferença entre esses dois sistemas é que uma parte do dinheiro poderia passar a ser utilizada por empresas privadas, o que as tornaria dependentes de subsídios públicos.
Há uns cem anos, quem propusesse tal sistema seria imediatamente tachado de socialista. Hoje, esse mesmo indivíduo é considerado libertário e “especialista em políticas públicas”. Agora, se o que você quer é uma reforma genuína e de livre mercado, não chame isso de privatização. Tal método é uma fraude magnânima. Sob uma verdadeira reforma de livre mercado, ninguém seria pilhado e a ninguém seriam dadas quaisquer garantias estatais. Você, e apenas você, seria o responsável por seu sustento, não legando a mais ninguém esse encargo. O slogan deveria ser: parem o roubo!
Na Polônia, as enormes fábricas não deveriam ter sido “privatizadas”. O estado deveria ter simplesmente saído do controle delas, vendendo os ativos a quem pagasse mais ou entregando-os para os respectivos funcionários e gerentes, e permitindo que os novos proprietários fizessem o que melhor lhes aprouvesse. A única função do estado seria não criar obstruções à concorrência. No Ocidente, as escolas públicas e a Previdência Social não deveriam ser privatizadas; elas deveriam apenas ser abandonadas, permitindo a liberdade total de gerenciamento e escolha. Em outras palavras, instituições de mercado não deveriam ser utilizadas como ferramenta de “políticas públicas”; elas deveriam ser a realidade prática em uma sociedade livre.
Uma objeção frequentemente levantada a esse meu ponto é que medidas parciais ao menos nos levam para a direção correta. É verdade que mesmo um sistema parcialmente livre ainda é melhor do que um totalmente socialista. Contudo, vitórias parciais são completamente instáveis. Elas facilmente são revertidas para um estatismo completo. Se as escolas públicas e a Previdência fossem privatizadas seguindo-se os esquemas frequentemente propostos, o sistema poderia até se tornar menos livre do que atual, pois haveria a possibilidade de se incorrer em mais gastos públicos para cobrir os novos custos demandados pelos vouchers e pelas contas privadas.
Na última década — e mais do que nunca no atual momento — o capitalismo passou a ser visto como um mecanismo criado para permitir que setores insolventes e mal geridos possam continuar operando ineficientemente. É por isso que reformas de livre mercado nunca foram tão necessárias.
O livre mercado não é apenas um mecanismo de gerar lucros e produtividade. Ele não serve apenas para estimular a inovação e a concorrência. Fazer a transição do estatismo para a economia de mercado significa fazer uma revolução completa na vida econômica e política, saindo de um sistema em que o estado e seus grupos de interesse estão no controle e indo para um sistema em que o poder do estado não tem função alguma. A liberdade não é uma opção de política pública. Ela é a abolição de todas as políticas públicas. Já passou da hora de tomarmos o passo seguinte e exigir justamente isso.
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[*] O governo da Califórnia impôs controles de preços no setor energético e criou mercados “artificiais” propícios para manipulações e para o descasamento entre oferta e demanda. Ao fixar preços abaixo dos preços de mercado, o estado limitou a lucratividade das companhias. E quando os custos da energia aumentaram, o congelamento de preços impediu que os produtores repassassem esse aumento aos consumidores. Além de ter impedido novos investimentos, esse congelamento de preços também desestimulou outras empresas de entrarem no mercado, o que geraria uma muito necessária concorrência.[N. do T.]
Lew Rockwell é chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com , e autor dos livros Speaking of Liberty.
Fonte: Artigo original de Mises Brasil