A Cultura da Vitimização: O protagonismo às avessas

Ao se tornarem vítimas alguns indivíduos acreditam que adquirem o direito de fugir de suas próprias responsabilidades e de encarar a realidade, responsabilizando os outros pelos seus fracassos.

A vítima é frequentemente retratada como o protagonista de nossa era atual. Ser uma vítima confere prestígio, exige atenção e promove o reconhecimento. Ela age como um poderoso gerador de identidade, direitos e autoestima. Além disso, a vítima parece imune a críticas e goza de uma inocência que transcende qualquer dúvida razoável. Como alguém poderia culpar ou, melhor dizendo, responsabilizar uma vítima por algo? Afinal, ela não age; ela sofre. Na figura da vítima, coexistem a ausência e a reivindicação, a fragilidade e a pretensão, o desejo de ter e o desejo de ser. Portanto, somos definidos não pelo que fazemos, mas pelo que sofremos, pelo que podemos perder e pelo que nos foi privado (Giglioli, 2016, p. 19).

Essas palavras marcantes são as primeiras do livro “Crítica da Vítima” de Daniele Giglioli (2016), que serve como um guia fundamental para compreender essa cultura da vitimização.

Transformação da Vítima em Identidade

O objetivo da crítica de Giglioli não se resume a negar a existência de vítimas reais que enfrentam injustiças e crimes, pois é inquestionável que tais vítimas estão presentes em nossa sociedade. Seus sofrimentos merecem nossa atenção e compaixão. No entanto, o cerne da análise de Giglioli reside na transformação do próprio conceito de vítima e na sua crescente relevância no mundo atual.

Neste livro, a autora busca desvelar como a noção de vítima não se limita mais a um papel passivo e momentâneo. Ela se tornou uma ferramenta central, um conceito poderoso que molda a mentalidade e o comportamento das pessoas. A cultura da vitimização, como Giglioli a descreve, é uma mentalidade que se difunde amplamente, independente de as pessoas terem ou não passado por eventos verdadeiramente traumáticos.

Em vez de ser apenas uma descrição de uma situação específica de sofrimento, a vítima torna-se uma identidade, um ponto de referência no qual muitos se ancoram. A ideia central é que essa transformação vai além da mera identificação com a vítima; ela cria um terreno fértil para a vitimização crônica, onde indivíduos podem adotar essa posição mesmo em situações onde a linha entre vítima e responsável é nebulosa.

O livro de Giglioli nos convida a refletir sobre como a cultura da vitimização influencia nossas interações sociais, nossas percepções sobre o mundo e nossa própria identidade. Ele nos alerta para o perigo de uma mentalidade que promove a passividade em detrimento da ação e que, em última instância, pode minar nossa capacidade de lidar construtivamente com os desafios que enfrentamos.

O Deslocamento da Vítima

Na atualidade, somos testemunhas de uma mudança profunda na maneira como entendemos o papel da vítima na sociedade. Antigamente, ser vítima estava intrinsecamente ligado a ser afetado por eventos específicos, como injustiças, acidentes ou crimes. No entanto, nos tempos atuais, essa definição evoluiu para algo muito mais complexo e abrangente.

Hoje, ser uma vítima transcende o mero acontecimento de eventos traumáticos. Para Antunes, M.C. e Farnetano, B.S. (2023), “Na contemporaneidade, há um deslocamento: antes, a vítima era alguém atingido por um acontecimento, hoje a vítima é um valor, uma identidade”, um rótulo que algumas pessoas adotam e que passa a definir grande parte de sua visão de mundo e interações sociais. Essa nova concepção da vítima é marcada por sentimentos persistentes, como ressentimento, inveja e medo, que continuam a ecoar no presente, mesmo que o evento traumático tenha ocorrido no passado.

Daniele Giglioli (2016), no contexto de seu livro “Crítica da Vítima,” compartilha a visão de Christopher Lasch (1983), destacando que, nos dias de hoje, todos nós tendemos a nos ver não apenas como sobreviventes de nossas próprias experiências, mas também como vítimas em potencial. Isso significa que a identidade de vítima se tornou uma parte intrínseca de nossa psicologia coletiva, moldando nossa perspectiva e influenciando nossas ações.

Essa transformação na concepção de vítima tem implicações profundas na sociedade contemporânea, afetando a maneira como as pessoas lidam com desafios, como se relacionam umas com as outras e como percebem suas próprias responsabilidades. É um fenômeno complexo que exige uma análise crítica para entender como ele impacta nossa cultura e comportamento coletivo.

A Inocência e a Isenção de Responsabilidade da Vítima

Giglioli explora minuciosamente duas características essenciais que definem a posição da vítima: a inocência e a isenção de responsabilidade. Esses elementos fundamentais lançam luz sobre a complexidade da questão do mal, um tema profundo explorado por Sigmund Freud em sua obra “Mal-estar na civilização” (1930/1996).

A discussão de Giglioli (2016) sobre as narrativas contemporâneas relacionadas ao mal e ao prazer revela uma série de axiomas que desempenham um papel central na construção da mentalidade vitimista. Um desses axiomas, “vocês me obrigaram,” está intrinsecamente ligado às emoções de vergonha e orgulho. Aqui, a vítima se apresenta como alguém que foi compelido por outros a agir de certa maneira, assumindo uma posição de inocência diante das consequências de suas ações.

Outro axioma, “Alice não sabe,” enfatiza a ideia de inocência, retratando a vítima como alguém que não tinha conhecimento ou controle sobre a situação em que se encontrava. Essa falta de consciência é frequentemente usada como justificativa para a isenção de responsabilidade.

O axioma “ele começou” aponta para a atribuição de culpa a um terceiro, alguém que iniciou a sequência de eventos que levou à situação de vitimização. Aqui, a vítima se posiciona como reagindo a uma ação inicial, muitas vezes justificando suas próprias ações em resposta.

Fato é que a cultura da vitimização está em ascensão, afetando áreas como o ensino, áreas profissionais, nas mais diversas atividades, na política, onde hierarquias estão sendo questionadas e a busca por culpados pelos próprios fracassos se torna prevalente.

“Por que nos odeiam?” é um axioma que questiona as motivações alheias, colocando a vítima na posição de alguém injustamente alvo de hostilidade. Esse sentimento de ser o alvo do ódio alheio frequentemente amplifica a sensação de vitimização.

Finalmente, o axioma “queremos tudo” revela a conexão entre a cultura da vitimização e a busca por direitos. A vítima, muitas vezes, acredita que tem o direito de ter tudo o que deseja, e se isso não acontece, ela se sente injustiçada.

Esses axiomas refletem a complexidade das narrativas que sustentam a cultura da vitimização e como essas narrativas são usadas para justificar a posição de vítima. Eles também destacam a importância de compreender esses padrões de pensamento para lidar de maneira eficaz com a cultura da vitimização na sociedade contemporânea.

A Armadilha do Vitimismo e a Espiral do Silêncio

Em um cenário contemporâneo, a cultura da vitimização transforma situações desfavoráveis em oportunidades para a vítima. A vítima, muitas vezes, coloca sua dor no centro do argumento, transformando todos os outros em algozes. Isso cria um ambiente propenso à polarização e à falta de diálogo crítico sobre as próprias posições e as dos outros.

Neste contexto a cultura da vitimização impõe ao outro uma espiral do silêncio, conforme descrita por Elisabeth Noelle-Neumann em seu trabalho “A Espiral do Silêncio: Opinião Pública – nosso tecido social”. A espiral do silêncio é uma teoria que explora como a pressão social afeta a expressão pública das opiniões das pessoas, podendo inclusive usar essa identidade de vítima como um escudo contra possíveis críticas, retaliações e até o cometimento de crimes.

Se alguém percebe que sua opinião está em desacordo com a narrativa predominante de vitimização em um determinado grupo ou contexto social, essa pessoa pode se sentir coagida a permanecer em silêncio, temendo ser vista como insensível, culpada ou até mesmo como uma agressora. Isso pode levar ao reforço do silêncio e à conformidade com as opiniões prevalecentes, mesmo que essas opiniões não sejam compartilhadas pessoalmente ou que extrapolem o bom senso.

Fato é que a cultura da vitimização está em ascensão, afetando mais diversas atividades profissionais, a ciência, áreas humanas, exatas, política, na justiça, onde hierarquias estão sendo questionadas e a busca por culpados pelos próprios fracassos se torna prevalente. É crucial compreender esse fenômeno para que, de fato, possamos discernir o que é a realidade e o que é um mero desejo de um grupo que se sente vitimizado. Afinal, a verdadeira justiça não reside em transformar desafios em vitimização, mas em enfrentá-los e superá-los.

Nesta era da cultura da vitimização, devemos lembrar que a verdadeira força reside em nossa capacidade de enfrentar desafios, transformá-los em oportunidades, nos tornar protagonistas da nossa vida, em vez de buscar refúgio na identidade de vítima.

Certamente, é fundamental esclarecer que vítimas reais existem e que é de extrema importância protegê-las e garantir que recebam o apoio e a justiça que merecem. O ponto de discussão aqui não nega a existência dessas vítimas genuínas, mas sim se concentra no fenômeno da vitimização desprovida de responsabilidade e do confronto com a realidade. A ênfase aqui é na distinção entre vítimas legítimas que enfrentam adversidades reais e merecem apoio e compreensão, e indivíduos que adotam a mentalidade vitimista como uma estratégia para evitar encarar as consequências de suas próprias decisões.

O que estamos abordando é a tendência preocupante em que algumas pessoas adotam a posição de vítima sem assumir a devida responsabilidade por suas ações ou pela resolução de seus problemas. Isso significa que, em vez de enfrentar desafios, superar obstáculos e buscar soluções construtivas, essas pessoas podem se refugiar na identidade de vítima como uma forma de evitar a responsabilidade por suas próprias escolhas e ações.

Para saber mais

ANTUNES, M.C.; FARNETANO, B.S. (2023). A cultura da vitimização ou de como culpar os outros pelos seus fracassos. Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana. Rio de Janeiro, 18(36), 169-173, mai. 2023 a out. 2023. Disponível em http://www.isepol.com/asephallus/numero_36/pdf/15%20-%20RESENHA%20FARNETANO%20ANTUNES.pdf

FREUD, S. (1996). O mal-estar na civilização. In J. Salomão (Trad.). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 27-148). Rio de Janeiro: Imago.  (Originalmente publicado em 1930[1929]).

GIGLIOLI, D. (2016). A Crítica da Vítima. Belo Horizonte: Ayine Editora.

LASCH, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana na era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago.

NOELLE-NEUMANN, Elisabeth (2017). A Espiral do Silêncio: Opinião Pública – nosso tecido social. Estudos Nacionais.


IoP

Artigos Relacionados

Redes Sociais

0FãsCurtir
0SeguidoresSeguir
96InscritosInscrever

Últimas Notícias