A dança de valores contemporâneos versus a ética de Aristóteles – Parte 1

Uma dança desenfreada revela a crescente distância entre o passado nobre e a ética contemporânea, que se afunda nas complexidades coletivistas das questões sociais, políticas e econômicas.

Estamos assistindo a uma sinistra dança, na qual os valores ancestrais se desprendem das raízes éticas, tão profundamente plantadas e testadas no tempo. Aristóteles nos deixou o legado precioso de virtude e da busca pela eudaimonia, a utopia da felicidade plena, forjada no caráter virtuoso, que incluia a coragem, a temperança e a justiça, suas virtudes-mestras, como alicerces de uma ética que agora se desmorona.

Ao longo do tempo, esta dança desenfreada revela a crescente distância entre o passado nobre e a ética contemporânea, que se afunda nas complexidades coletivistas das questões sociais, políticas e econômicas. Influenciada pelo Iluminismo e pensadores como Kant, Hegel e Habermas, ela traçou um novo caminho, iluminado pela moral como dever, sobretudo protagonizada pelo Estado, onde a autonomia moral é proclamada como pedra angular.

Nesse vórtice, a ética contemporânea tece sua trama, destacando o Imperativo Categórico de Kant, que exila as consequências das ações em nome do dever. É uma dança nas sombras, longe da luz das virtudes. Sob as mãos de Hegel, o tecido ético se entrelaça com o contexto histórico e social, reconhecendo que a moral não nasce em vácuo, mas na encruzilhada cultural e política, ou seja no desconhecido e na fragmentação do todo com base em desejos coletivistas.

No palco sombrio, a ética de Habermas celebra a harmonia da comunicação e do diálogo, mas em meio a essa sinfonia, ecoam dúvidas sobre a “degradação ética e moral”. O distanciamento de Aristóteles, para alguns, é um luto pelos valores perdidos, mesmo sendo uma referência secular, enquanto outros veem a ética contemporânea como um caleidoscópio de desafios morais, sobretudo pelo abandono das raízes que construíram e desenvolveram o ocidente. No entanto, este é um panorama incerto, onde a moral e a ética enfrentam o crepúsculo, buscando uma nova alvorada em um mundo em constante metamorfose, cuja certeza não existe. Ao invés disso somente o relativismo ético e moral.

Ética de Aristóteles

Aristóteles, um dos filósofos mais proeminentes da antiguidade clássica, legou à filosofia moral uma perspectiva rica e duradoura, destacando-se principalmente em sua obra “Ética a Nicômaco”. Sua abordagem ética é profundamente ancorada na noção de virtude e busca da felicidade, conhecida em grego como “eudaimonia“. Aristóteles acreditava que a busca da felicidade era o propósito central da vida humana, e essa busca estava intrinsecamente ligada à moralidade.

Para Aristóteles, a virtude moral desempenhava um papel central na busca da eudaimonia. Ele concebia as virtudes como hábitos adquiridos por meio da prática contínua, e destacava a necessidade de equilíbrio entre extremos. Essa ideia é encapsulada na famosa doutrina do “meio-termo” (ou “equilíbrio virtuoso”), na qual a virtude está situada entre dois vícios opostos. Por exemplo, a virtude da coragem fica entre a covardia e a temeridade, enquanto a virtude da temperança reside entre a indulgência e a autonegação.

Aristóteles também faz distinção entre duas categorias de virtudes: as virtudes morais e as virtudes intelectuais. As virtudes morais dizem respeito ao caráter moral e à conduta ética na vida cotidiana. Elas incluem, por exemplo, a coragem, que é o equilíbrio virtuoso entre a covardia e a temeridade, e a justiça, que é o equilíbrio entre a injustiça e o excesso de justiça.

Por outro lado, as virtudes intelectuais, como a sabedoria prática (phronesis), se referem à capacidade de discernir o que é moralmente correto em situações específicas. Elas envolvem a aplicação do raciocínio prático e da sabedoria na tomada de decisões éticas. Portanto, Aristóteles não apenas enfatizou a importância das virtudes morais na construção de um caráter ético, mas também a necessidade de desenvolver as virtudes intelectuais para guiar ações éticas em circunstâncias variadas e complexas.

A ética aristotélica é uma abordagem que coloca o florescimento humano e a busca da felicidade no centro de sua reflexão ética, enfatizando a importância do desenvolvimento do caráter e da prática de virtudes morais e intelectuais para atingir esse objetivo. Essa perspectiva filosófica tem influenciado significativamente a tradição ética ocidental e continua a ser uma fonte de inspiração para a compreensão da moralidade e da conduta humana.

Ética Contemporânea

A ética contemporânea, em contraste com a tradição ética aristotélica ganhou impulso nos últimos séculos. Essa transformação ética foi impulsionada por uma série de fatores, incluindo o movimento iluminista, mudanças sociais, políticas e científicas que moldaram de forma profunda a maneira como entendemos a moralidade. Nessa abordagem, destacam-se pensadores notáveis, como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Jürgen Habermas.

Immanuel Kant, um filósofo da Era Moderna, desempenhou um papel central na formulação da ética contemporânea. Sua obra, notadamente a “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, introduziu o Imperativo Categórico como alicerce da moralidade. Kant enfatizou a noção do dever moral, postulando que as ações devem ser realizadas não com base em consequências desejadas, mas por respeito ao dever em si. Ele defendeu a autonomia da razão como o guia supremo para a conduta ética, destacando que agir moralmente é uma expressão de nossa capacidade racional e autonomia.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel expandiu a ética contemporânea com sua abordagem historicista e dialética. Ao contrário do formalismo kantiano, Hegel argumentava que as decisões éticas são intrinsecamente ligadas ao contexto social e histórico. Ele via a moralidade como uma evolução que ocorre ao longo do tempo, onde os indivíduos desenvolvem princípios éticos em resposta aos desafios morais apresentados por sua realidade social. Portanto, a ética hegeliana é estritamente vinculada à história e à sua inseparabilidade, reconhecendo que as decisões éticas são moldadas pelo ambiente e pelas relações humanas.

Jürgen Habermas, um filósofo contemporâneo, trouxe contribuições significativas à ética contemporânea com sua teoria da ética discursiva. Habermas enfatiza a importância do diálogo interpessoal e da comunicação na formação de princípios éticos. Sua ética da discussão visa alcançar um consenso racional entre os sujeitos por meio de um discurso livre e desprovido de constrangimentos. Habermas argumenta que a razão não está escondida em um domínio inacessível, mas, em vez disso, é um processo que se constrói a partir da argumentação interpessoal. A ética democrática, em sua visão, surge do consenso alcançado por meio do diálogo aberto, permitindo a construção de princípios éticos aceitáveis para a sociedade.

A evolução da ética, da perspectiva aristotélica à ética contemporânea, é considerado por estudiosos a evidência do dinamismo da filosofia moral ao longo da história. A ética contemporânea, influenciada por pensadores como Kant, Hegel e Habermas, enfatiza a autonomia da razão, a consideração do contexto social e histórico, bem como a importância do diálogo interpessoal na construção de princípios éticos. A proposta dessa abordagem nos desafia a explorar as complexidades da moralidade e a adaptar nossas compreensões éticas à medida que nossa compreensão do mundo se aprofunda e se amplia.

Comparativo

Ao comparar a ética aristotélica e a ética contemporânea, notamos algumas diferenças fundamentais:

  1. Virtude vs. Dever: Aristóteles enfatiza o desenvolvimento de virtudes morais e intelectuais como a base da ética, enquanto Kant destaca o dever moral, acreditando que a moralidade deve ser baseada na autonomia da razão, onde os indivíduos agem de acordo com princípios universais que podem ser aplicados a todos, ou seja, pela relativização, em vez de buscar virtudes ou criar hábitos virtuosos.
  2. Busca da Felicidade vs. Comunicação Interpessoal: Aristóteles associa a ética à busca da felicidade e da excelência de caráter, enquanto Habermas coloca ênfase na comunicação interpessoal e no diálogo como base para a formação de princípios éticos, ou seja, a partir do consenso racional alcançado por meio de um discurso livre e desprovido de constrangimentos. Isso é um tanto perigoso, uma vez o domínio do discurso pela força tende a alterar a percepção da ética em um grupo social, como sendo moldada a partir do comportamento dos indivíduos.
  3. Contexto Histórico e Social: A ética contemporânea, especialmente a de Hegel, considera o contexto social e histórico, reconhecendo que as decisões morais estão sujeitas a influências contextuais, de forma relativa, influenciadas pelo ambiente em que ocorrem. A partir desse pensamento podemos concluir que a ética então passa a ser relativa, dependendo do contexto apresentado.
  4. Mudança de uma Razão Absoluta para uma Razão Processual: Aristóteles confia em uma razão absoluta, enquanto a ética contemporânea, exemplificada por Habermas, vê a razão como um processo em constante evolução. Basicamente este pensamento altera uma percepção de “razão absoluta”, cunhada por Aristóteles, em que a razão era uma qualidade inerente e estática que poderia ser aplicada de forma consistente em todas as situações. Na contramão, Habermas traz uma visão relativizada, ou seja, como um “processo em constante evolução”. A razão passa a ser vista como algo que se desenvolve ao longo do tempo em resposta a desafios e mudanças na sociedade, ou seja, ela pode ser qualquer coisa, bastando um grupo decidir o que ela seja.

A Escola de Frankfurt e sua Influência na Filosofia Contemporânea

Para compreender plenamente a evolução da ética contemporânea e a contribuição dos filósofos mencionados, como Hegel e Habermas, é fundamental explorar o contexto da Escola de Frankfurt. Essa escola de pensamento teve um impacto profundo e duradouro na filosofia e nas ciências sociais, alterando significativamente a forma como a filosofia era abordada, desde o romantismo alemão até os dias atuais.

A Escola de Frankfurt, originalmente conhecida como o Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung), foi fundada em Frankfurt, Alemanha, na década de 1920. Inicialmente, o instituto era focado na tradição marxista, mas com o tempo, evoluiu para uma perspectiva mais ampla que incluía elementos da psicanálise freudiana, da teoria crítica e da filosofia continental.

Uma das figuras proeminentes associadas à Escola de Frankfurt foi Max Horkheimer, que liderou o instituto por muitos anos. O grupo de pensadores da escola, que incluía Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, entre outros, buscou examinar criticamente a cultura e a sociedade, com ênfase na análise da cultura de massa, na teoria crítica e na compreensão das condições sociais e políticas. Esses filósofos adotaram uma visão que relativizou esses conceitos, desafiando a ideia de virtudes estáveis e princípios morais absolutos, conceitos cunhados por Aristóteles.

Em relação à ética contemporânea, a Escola de Frankfurt introduziu conceitos ditos críticos, que influenciaram filósofos como Habermas. O foco na crítica das estruturas sociais, na dissolução hierárquica de relações e no exame das condições em que a ética é praticada tornou-se um tema recorrente. A argumentação é que a cultura de massa estava homogeneizando a moralidade e substituindo valores autênticos por uma conformidade superficial. Além disso, a ênfase na importância da emancipação e da liberdade individual, baseada unicamente na relativização da ética, influenciou a reflexão sobre a autonomia moral, que continua a imperar nos dias atuais, nos afastando cada vez mais do pensamento de Aristóteles.

Degradação da ética

Houve uma mudança significativa na ênfase da ética ao longo do tempo, da ética aristotélica para a ética contemporânea. A ética aristotélica, com seu foco nas virtudes individuais, na busca da felicidade pessoal e no desenvolvimento do caráter virtuoso, coloca o indivíduo como um agente ético responsável por sua conduta e busca da eudaimonia. Essa perspectiva é, em grande parte, centrada no indivíduo como protagonista de suas ações e responsável por seu comportamento ético.

No palco da ética, uma dança ancestral cede lugar a passos desconhecidos, uma mudança no ritmo dos valores que moldaram o ser, perpetrada pelo pensamento de “liberação” das amarras morais e éticas. Aristóteles, o filósofo de outrora, celebrava virtudes e buscava a luz da felicidade nas almas individuais. O indivíduo, o protagonista de seu próprio fado ético, era artífice de seu caráter virtuoso, moldando seu destino na busca da eudaimonia.

Na dança da mudança do “novo” a virtude e o dever se entrelaçam de forma fluida, distanciando-se. Entre os ecos da tradição e o anseio pelo novo, por um amanhã desconhecido, ancorado apenas em desejos, a sociedade se vê imersa em um mar de incertezas, rumo à tragédia anunciada. Onde alguns enxergam evolução em um mundo em constante mutação, a ressureição do “novo”, com a exaltação dos desejos pessoais sobre as vitudes, o abandono das implicações da responsabilidade, o distanciamento do protagonismo para o bem e a falência da justiça, outros divisam a exaustão de um sistema ético e moral, sob forma do questionamento dos pilares que, historicamente, sustentaram a sociedade ocidental.

Para saber mais

  1. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002.
  2. Immanuel Kant. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret, 2005.
  3. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Fundamentos da Filosofia do Direito. São Paulo: Martin Claret, 2009.
  4. Jürgen Habermas. Ética do Discurso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  5. Max Horkheimer. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro Editora, 2007.

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