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Por que as coisas do governo são chamadas de “públicas”?

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As estruturas e serviços governamentais — que na verdade são desserviços em geral — são chamados de “públicos”, enquanto os serviços que respondem eficientemente ao público são chamados de “privados”. Por que isso?

Essa forma de enquadrar a distinção poderia ter como objetivo denegrir sutilmente o mercado, ou o “setor privado”, onde o lucro motiva “egoisticamente” as pessoas que, no processo, melhoram a vida de estranhos todos os dias. O histórico desse setor é visivelmente melhor do que o do “setor público”. Portanto, somos ensinados a acreditar que as motivações do governo são mais puras – a busca altruísta do “interesse público” por parte dos “funcionários públicos”. Isso supostamente os torna superiores aos que buscam o lucro, não importa quão eficazes sejam os verdadeiros produtores de riqueza – empresários, investidores, gestores e trabalhadores.

A escola de economia política da Escolha Pública estabeleceu a visão mais sensata de que as pessoas não se tornam moralmente superiores ao resto de nós quando assumem cargos públicos. São apenas pessoas, exceto que os incentivos perversos exclusivos do domínio político/burocrático diferem drasticamente dos incentivos produtivos que distinguem o domínio empresarial. Deveríamos chamar os detentores de cargos governamentais de auto-servidores “públicos” para expor esse fato básico. Eles podem ser sinceros nas suas racionalizações sobre ajudar as pessoas, mas isso não muda o que fazem – coagir as pessoas, a começar pelos pagadores de impostos. Em contraste, as pessoas no mercado precisam, em última análise, satisfazer os consumidores livres ou encontrar outra coisa para fazer.

Pense no que conhecemos como escolas públicas. Alguém já ouviu falar de uma escola que não fosse aberta ao público? Quem as frequenta? A Grã-Bretanha está mais perto da verdade. As escolas públicas são chamadas de “escolas privadas” e as escolas do governo são chamadas de “escolas estatais”. Dado que, para onde quer que se olhe, os pais têm de pagar pelo péssimo e caro sistema governamental, quer enviem ou não os seus filhos para lá, e muitos pais não se podem dar ao luxo de pagar duas vezes, poderíamos chamar às unidades do governo “escolas de recrutamento”.

Mas elas são chamados de “públicas” porque é ele quem as possui – teoricamente, mas não realisticamente.

Com outros “serviços públicos”, existe ainda menos escolha. Considere as utilidades públicas. A maioria das pessoas não consegue escolher as empresas de água, eletricidade e gás, embora isso não seja totalmente inédito. Desde que a concorrência apareceu em alguns lugares, estes chamados monopólios naturais não parecem tão naturais, afinal. Se a concorrência fosse legal em todos os lugares, tecnologias adequadas poderiam ter sido inventadas há muito tempo.

Encontramos alternativas ao governo de maneiras que podem parecer surpreendentes para alguns. Diz-se que dois centros insubstituíveis de governo são os tribunais para a resolução de disputas e a polícia para a segurança contra os malfeitores. Durante muito tempo, as pessoas procuraram resolver disputas de forma pacífica, sem os ineficientes e por vezes corruptos tribunais governamentais. Na Idade Média, comerciantes de todo o mundo comercializavam os seus produtos em feiras na Europa. Às vezes, surgiam divergências sobre contratos. Assim, os mercadores procuraram uma alternativa justa e eficiente às cortes dos príncipes locais. O resultado foi a complexa e espontânea Lei Mercante. As disputas surgidas sobre contratos, que na verdade criaram o direito privado para as partes, foram levadas perante pessoas que adquiriram reputação de serem sábias, justas e eficientes. Os comerciantes valorizavam tanto as resoluções rápidas que concordaram em não recorrer das decisões contra eles. Era mais importante passar para a próxima transação. O não cumprimento de uma decisão afastaria e limitaria oportunidades futuras.

O Lei Mercante era tão boa que evoluiu para o direito comercial sob o qual grande parte do mundo opera hoje. Podemos ver sinais disso na arbitragem privada, que hoje é um grande negócio. Muitos contratos que assinamos especificam que as divergências serão resolvidas em tribunais privados. Infelizmente, o governo dos EUA reivindica autoridade para anular as decisões dos árbitros com base em motivos vagos. Se isso fosse impossível, a arbitragem provavelmente seria ainda mais comum do que é hoje. O governo nunca irã competir de forma justa.

Da mesma forma, as empresas de segurança privada vigiam centros comerciais, fábricas, faculdades e outros estabelecimentos. Também é um grande negócio. Os “serviços” do governo são inadequados apesar dos elevados impostos, por isso as pessoas encontram alternativas e as empresas são totalmente responsabilizadas ​​quando cometem erros. Isso não acontece com a polícia do governo.

Quem é o dono das estruturas governamentais? A maioria das pessoas diria que numa democracia o público as possui. Mas isso realmente não é assim. Os membros do público não podem vender ou comprar ações ou fazer outras coisas que os verdadeiros proprietários fazem. Eles nunca consentiram em ser proprietários. Essa é apenas uma afirmação simbólica. Nos casos de propriedade real, as pessoas adquirem direitos de propriedade através de ações volitivas inequívocas que envolvem contratos com termos razoavelmente claros. O contrato social existe apenas na imaginação.

Os verdadeiros proprietários das estruturas governamentais não são aqueles que realmente as controlam? Pode ser quem tem autoridade para colocar placas de “proibição de invasão”, que adornam muitas propriedades “públicas”. (A propriedade privada também tem esses sinais, mas isso ocorre porque existem dois tipos de propriedade privada: a que está aberta ao público e a que não está, como as casas.)

Não deveríamos nos deixar enganar pelo fato de o povo poder votar em ocupantes de cargos públicos, que então, em teoria, atuam como agentes do povo. A responsabilização desses pseudo-agentes perante os chamados proprietários é virtualmente zero quando se considera como os políticos e burocratas podem facilmente desviar a atenção das más consequências das suas ações e/ou da sua culpabilidade por essas consequências. Além disso, um voto mal conta e as campanhas para realmente mudar as coisas são proibitivamente caras e sujeitas a problemas de parasitismo.

Em contraste, a responsabilização é poderosa na sociedade com fins lucrativos. A falência é uma ameaça sempre presente para empresas indiferentes e irresponsáveis, e a reputação impõe uma disciplina significativa. As partes lesadas também podem processar pessoas no mercado. Os processos contra o governo muitas vezes não são permitidos ou limitados.

É hora de abrir à concorrência tantas funções governamentais quanto possível. O que parece impossível hoje pode não parecer no próximo ano. Portanto, procuremos novos movimentos em direção a serviços melhores e mais baratos – para não falar em direção a liberdade.


Sheldon Richman é vice presidente da The Future of Freedom Foundation e editor da revista mensal Future of Freedom. Durante 15 anos foi o editor da The Freeman, publicada pela Foundation for Economic Education.

Fonte: Instituto Rothbart Brasil

A internet pode ser controlada?

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Estive no mês de janeiro de 2011 em Myanmar, também conhecido como Birmânia[1]. Surpreendi-me com essa terra de gente simples, governada por meio da repressão e do medo durante mais de 60 anos de uma junta militar cruel e opressiva.  Na Birmânia, celulares de estrangeiros não funcionam (não há roaming), cartões de crédito não são aceitos, e-mails são proibidos e, ao passo em que a taxa oficial de câmbio é de 6 kyats por dólar, a taxa no mercado livre é de 800 kyats por dólar.

Enquanto lá estive, li as notícias sobre a luta do povo da Tunísia contra o Estado policial lá vigente, e sobre como ativistas digitais utilizaram o Facebook e celulares para driblar a censura e organizar-se de forma decisiva para derrubar o ditador Ben Ali, surpreendendo o mundo.

Ao chegar ao Brasil há algumas semanas, conversei com meu amigo e vice-presidente do IEE, Ricardo Gomes, sobre sua visita neste mês a Cuba, para entrega do Prêmio Liberdade de Imprensa a Yoani Sánchez.  Ricardo descreveu-me a saga de Yoani para publicar seus textos.  A cubana incorre em custos exorbitantes para acesso à web e tira fotos dos manuscritos de seus textos, que por sua vez são copiadas para pen drives, de forma a minimizar o tempo on-line e despistar censores.

A partir do dia 25 de janeiro[2], acompanhei, pelo live feed da AlJazeera na internet, as manifestações dos revoltosos contra o ditador Mubarak no Egito.  No momento em que escrevo, dia 11 de fevereiro, Mubarak acaba de renunciar, e a praça Tahrir está em júbilo. Alguns dos principais líderes e heróis da revolução foram blogueiros (também chamados de netizens, net+citizens) e ativistas digitais (ou hacktivistas), que utilizam as redes sociais como Twitter e Facebook, muitas vezes anonimamente, tanto como fonte de ideias quanto para mobilização on-line e off-line.  E notou-se a ausência de partidos políticos, grupos religiosos e outras organizações e indivíduos conhecidos no alto comando do levante. Cristãos, muçulmanos e não religiosos protestaram unidos[3], e juntos limparam as ruas, policiaram a vizinhança, protegeram os museus e se abstiveram de portar mensagens com teor partidário ou religioso.

O que há em comum entre os recentes acontecimentos?  O que está acontecendo no mundo? Qual o papel da internet daqui para frente?

Cyberutópicos – que acreditam que a internet nos levará à liberdade e à democracia plenas — e cybercéticos — que duvidam que a internet tenha qualquer relação com a liberdade ou a política — vêm travando um debate há algum tempo.  Porém, os recentes acontecimentos parecem indicar que uma terceira visão, que chamarei de cyber-realista, parece ser a que melhor reflete os últimos acontecimentos.

A internet triunfou: os protestos on-line transcenderam os botões de “Curtir” e o “ReTweet”, e inspiraram o levante no mundo real.  Por outro lado, os governos mostraram a face negra do autoritarismo covarde, e não surpreendentemente fizeram uso da ilegalidade e de legislação sem legitimidade para conter os avanços dos dissidentes.  O governo egípcio, por exemplo, obrigou operadoras de telefonia como a Vodafone e outras a transmitir, desde o início dos protestos, mensagens em massa clamando os “homens honestos e fiéis (à pátria)” a confrontar “os traidores e criminosos” e a “proteger nosso povo e a honra“, participando de marchas pró-Mubarak[4].  Adicionalmente, para surpresa de alguns cyberutópicos, com uma simples tacada o governo egípcio ordenou que os quatro provedores de internet, assim como os de telefonia, interrompessem totalmente as conexões no dia 27 de janeiro, isolando o Egito do mundo por vários dias.  A insurreição continuou firme, no entanto, e teve êxito com a renúncia de Mubarak no dia 11 de fevereiro.

Mas o que podemos dizer sobre o futuro da censura e da liberdade no Brasil?  Devemos ser cybercéticos, ou cyber-realistas?  O que podemos esperar da internet?  Antes de dissecar a questão, no entanto, é importante traçar uma retrospectiva histórica da mídia e da censura.

O que a história tem a dizer

Uma das frases marcantes do economista austríaco Ludwig von Mises é “Somente ideias podem suplantar ideias“. Ideias, no entanto, não se disseminam no vácuo.  Durante milênios, as ideias disseminaram-se por métodos tradicionais, tais como boca a boca, papiros e pergaminhos.

Os governos, desde sempre, lutam contra a massificação da informação não controlada.  A batalha entre a censura e a livre expressão é milenar.  Sócrates foi condenado à morte por “corromper os jovens”, e os governantes, na antiga República Romana, instituíram censores[5] a partir do século V a.C., para regular os “bons costumes”.

A partir do século XV, o custo da disseminação de informações no Ocidente diminuiu substancialmente devido à tecnologia da prensa tipográfica e à criação do livro no formato moderno. Nessa época, como resposta às ideias de Lutero e outros, consideradas perigosas, a Igreja Católica baniu e queimou milhares de livros e processou autores por heresia, inclusive condenando vários à fogueira[6].

À medida que o número de jornais cresceu e a informação passou a ser mais bem difundida na Europa do século XVI e XVII, cresceu também a preocupação dos governantes quanto à sua sustentabilidade no poder.  Os impostos eram coletados presencialmente, sob ameaça de confisco dos bens remanescentes ou prisão, em caso de inadimplência.  E com o crescente número de guerras europeias, os governos aumentaram os impostos, provocando reações da população.  Os jornais serviram de meio para algumas críticas da população, assustando os governantes, que contavam com os jornais como veículos exclusivos de divulgação de propaganda governamental.

copyright, por exemplo, teve origem nos esforços dos governos europeus de controlar o conteúdo dos livros e jornais. Com o copyright foram estabelecidos “direitos de impressão de cópias”, que serviam como controles tanto para a produção quanto para a comercialização de livros, controles esses por meio dos quais o governo conseguia regular o conteúdo e obter espaço importante para a divulgação de propaganda.

Do outro lado do Atlântico, é possível que a Revolução Americana de 1776 não houvesse ocorrido não fosse a crucial participação da imprensa nas décadas que a antecederam. Nesse período, a circulação de jornais cresceu exponencialmente, beneficiada por uma modesta liberalização dos herméticos controles da coroa inglesa à imprensa, especialmente nas colônias[7].

O panfleto de Thomas Paine — “Common Sense” — dissecou argumentos para a libertação das colônias em uma época em que ainda não havia consenso sobre a independência da Inglaterra. Durante seu primeiro ano de circulação, 500.000 cópias foram vendidas, em numerosas 25 edições. Tal número é ainda mais impressionante se levarmos em conta a população total das colônias à época — apenas 2.400.000 habitantes, incluindo escravos e índios, crianças e idosos. “Common Sense” teve crucial importância para a consolidação das ideias de independência.

Neste século XXI, no entanto, o principal meio de disseminação de ideias — principalmente daquelas ideias antagônicas ao status quo e ao mainstream — tem sido a internet.  Durante o século XX, as ideias eram principalmente difundidas por livros, editoriais em jornais, revistas especializadas e alguns programas selecionados de televisão. De alguns anos para cá, porém, jornais passaram a ser principalmente provedores de serviços, e subsidiariamente provedores de notícias locais, de esportes e de política. Os jornais dotados de conteúdo editorial e análises profundas — veiculadores de ideias no segmento de impressos diários — estão perdendo espaço mundialmente.

Adicionalmente, inclusive no que tange a noticiário sem análise, a internet já supera os jornais. Nos Estados Unidos, desde 2008, a internet supera os jornais como fonte de notícias em geral, e hoje cerca de 41% dos americanos obtêm notícias pela internet, que é superada apenas da televisão, com 66% de participação[8].  E entre os homens com idade entre 18 e 49 anos, a internet já supera a televisão como fonte de notícias[9].

E ainda mais recentemente, os livros e jornais estão migrando para formato eletrônico, e são utilizados em dispositivos como o iPad, Kindle e celulares[10].

O rádio, a televisão e o negócio de livros possuem características muito diferentes das da internet. Nenhum deles viabiliza a divulgação de ideias pela massa de cidadãos comuns. Tampouco são desenhados para comunicação interpessoal em massa. A internet e as novas tecnologias, por outro lado, não só viabilizam a divulgação de ideias pelo cidadão comum[11] como também permitem que os netizens tirem partido de eventuais vulnerabilidades dos sistemas operados por governos ou empresas, agindo à margem do Estado de Direito, como o WikiLeaks tem demonstrado.

Em suma, neste atual cenário, as barreiras à entrada de novos provedores de ideias desapareceram, e a tecnologia permitiu a viabilização de inúmeros nichos formados por produtores e consumidores de ideias questionadoras do conformismo massificante comum à mídia de massa e ao mainstream[12].  Decerto, a internet não possui uma ideologia nativa, mas sua estrutura e tecnologia favorecem o dinamismo de pensatas, liberais ou não, que outrora não obtinham eco.

A internet pode ser controlada?

Há tempos circula um mito persistente: o de que “não se pode controlar a disseminação de informação na internet“. O mito sustenta que governos não são capazes de conter tal disseminação, principalmente por conta da tecnologia na qual a internet se baseia. Segundo o mito, não é necessário se preocupar, pois o governo já teria perdido essa guerra. Afirma-se que a informação relevante virá à tona, de alguma forma, pela característica da rede: descentralizada, sem governança central, e na qual a informação viaja por rotas alternativas e redundantes. Ainda que a maior parte da rede mundial fique inoperante, a informação é capaz de ser transmitida adequadamente entre as partes remanescentes. De fato, a internet foi originalmente concebida de forma a resistir a um ataque nuclear.

Certamente tendo o contexto acima em mente, nos primeiros anos da internet, John Gilmore, fundador da Electronic Frontier Foundation, declarou que “a internet interpreta a censura como dano, e a evita fazendo um desvio“.

Tal assertiva é apenas parcialmente verdadeira. Talvez seja mesmo impossível impedir que uma dada informação venha à tona na internet em algum momento.  Porém, o governo pode bloquear e fechar sites, filtrar e censurar informações, bloquear acessos por endereço IP[13], tornar ilegais certos modos de expressão, perseguir disseminadores de informação, entre outros meios.  Em suma, o governo pode tornar muito custosa a disseminação, alcançando na prática seu objetivo.

A Birmânia, por exemplo, possui um firewall[14] nacional que isola o país e torna a internet local uma mera intranet [15] de informações amigáveis ao governo. O acesso à internet (sem censura) pelos birmanos só é possível caso utilizem proxy servers, que permitem acessar indiretamente os sites bloqueados, via triangulação. Há uma interminável lista de sites bloqueados, que inclui, entre outros, aqueles de exilados, da mídia internacional, blogs e até sites de bolsas de estudo no exterior. É também proibido por lei ter contas de e-mail não fornecidas pelo governo. Eu não consegui acessar minhas contas, nem mesmo dos provedores brasileiros! Entretanto, percebi que na capital Yangon há praticamente um cybercafé a cada quarteirão. A população faz uso do anonimato propiciado pelos cybercafés para driblar a lei, sem dúvida com alguma ajuda dos próprios funcionários para utilização dos proxy servers. O governo há algum tempo obrigou a instalação de câmeras em todos os cybercafés, e também os obrigou a enviar ao governo um print screen, a cada cinco minutos, de todas as sessões dos usuários. Também são obrigados a fornecer os números de identidade, telefone e endereço dos usuários, se requisitados pela polícia. Assim prevê a legislação, chamada de Lei Eletrônica de 1996.

A limitada velocidade de conexão também é usada pelo governo da Birmânia como meio de conter a disseminação de ideias. A conexão padrão é de 512K, mas usualmente essa conexão é compartilhada por vários usuários. Eu despendi cerca de uma hora para fazer cinco pagamentos no site do meu banco.

E o governo não hesitou em derrubar a “internet” (na verdade derrubou a intranet local) e as linhas de telefone por longos períodos em maio e junho de 2009, enquanto durou o julgamento da heroína vencedora do Nobel da Paz e líder da oposição Aung San Suu Kyi[16], pela alegada violação dos termos de sua prisão domiciliar, por haver abrigado e alimentado o americano John Yettaw, que nadou até sua casa, sem ser convidado, furando o bloqueio policial. E o governo fez o mesmo durante a repressão aos protestos antigovernamentais de 2007 liderados pelos monges (a “Revolução do Açafrão”), que causou a morte de mais de 130 pessoas. Entre o dia 28 de setembro e 6 de outubro de 2007, a internet não funcionou e os cybercafés foram fechados, com a justificativa oficial de “manutenção”. Ainda hoje o mundo ignora os detalhes desse massacre hediondo contra mulheres, ativistas e monges que protestavam pacificamente nas ruas de Yangon, Mandalay e várias outras cidades.

Na Birmânia, o Facebook pode ser acessado parcialmente, na área de mural — já o acesso às áreas de mensagens privadas é bloqueado. Uma amiga, que incluiu um post no seu mural contendo a palavra “Birmânia”, recebeu uma mensagem de seu software antivírus indicando que havia sido instalado um software de keylogger no seu notebook. O keylogger típico registra todas as teclas pressionadas pelo usuário e envia esses dados para o instalador do software malicioso. Por sorte, minha amiga ficou ciente do problema por meio de seu antivírus e teve extrema cautela até sair do país.

Sim, permanece possível acessar e-mails e internet na Birmânia (ilegalmente), mas a que preço?  Ao preço de ser preso por anos a fio, caso descoberto?  Não, o exemplo da Birmânia mostra que governos podem censurar a internet na prática.[17]

Além disso, os governos podem efetivamente tirar proveito da internet para perseguir os ativistas, pesquisando seus hábitos, estudando suas declarações, identificando seus nomes, instalando softwares maliciosos.

Finalmente, os governos podem usar a internet para fazer propaganda, como no caso do governo Mubarak e no de vários países. Na China, por exemplo, há cerca de 250.000 comentaristas treinados e pagos para sorrateira e dissimuladamente defender o Partido Comunista em sites, redes sociais e chatrooms.[18]

A censura na internet no Brasil e no resto do mundo

Até agora foram analisados alguns exemplos considerados extremos, que, portanto, parecem ter pouca relação com a realidade brasileira. Essa interpretação é tentadora, mas enganosa.

Os países dotados de democracias consolidadas, como o Brasil, os Estados Unidos, países da Europa Ocidental, a Austrália, o Canadá e outros supostamente possuem razoáveis defesas às acometidas de seus governos contra disseminadores de ideias consideradas “dissidentes” ou “subversivas”.  Porém, os donos do poder usualmente aproveitam toda e qualquer oportunidade que possa servir de ensejo para o estabelecimento de amarras ao livre discurso de ideias, bem como de instrumentos legais para a perseguição de inimigos políticos. Tais janelas de oportunidade surgem em ocasiões de insegurança e de temores da população, reais ou imaginários, em relação a perigos externos, crises em geral, ocorrência de crimes hediondos (v.g., abuso sexual infantil) e outros.  E portanto, em nome de uma boa justificativa, e de posse de um discurso de intenções que quase nunca tem a ver com as reais intenções, implementam leis e regras que concederão ao governo o grau discricionário necessário para a viabilização da censura a posteriori.[19]

É possível conjecturar sobre a trajetória futura de atuação dos inimigos da liberdade de expressão nos países democráticos.  É natural esperar que:

a) utilizem uma justificativa “nobre” e “razoável”, e que busquem o caminho de menor esforço e menor risco, ou seja, que escolham aquelas matérias para as quais boa parte da população clama por uma atitude do governo;

b) iniciem sua atuação com medidas de escopo limitado e penalidades brandas;   mas caso ocasiões futuras abram brechas, é de se esperar que aumentem o escopo ou as penalidades;

c) que tentem cooptar e tornar corresponsáveis legais os intermediários da informação, como, por exemplo, os provedores de acesso (ISPs) e de hospedagem de sites, bem como os blogueiros;

d) que mencionem iniciativas implementadas por países com “credibilidade” como uma das justificativas para a implementação de iniciativa similar no país.

A perseguição ao anonimato

Aquilo que Thomas Jefferson chamou, na Declaração de Independência, de “longo trem de abusos e usurpações“, começa em geral — no que se refere à censura — pela proibição ao anonimato.  O anonimato protege o autor de eventuais perseguições, de chantagens e de ataques maliciosos de ordem pessoal, e mantém o foco nas ideias.  Os fundadores dos Estados Unidos sabiam da importância do anonimato, e o consagraram na Constituição.  Alexander Hamilton e James Madison escreveram os “Federalist Papers” sob o pseudônimo “Publius”, e vários outros fundadores utilizaram pseudônimos diversos de tempos em tempos.  Recentemente, em 1995, a Suprema Corte, declarou: “A proteção de discursos anônimos é vital para a democracia. Permitir que dissidentes protejam sua identidade os libera para expressar visões críticas defendidas por minorias. O anonimato é a proteção contra a tirania da maioria“.[20]

Adicionalmente, o anonimato on-line protege aqueles que desejam reportar abusos e ilegalidades cometidos pelo governo ou companhias, protege defensores de direitos humanos contra governos repressores e auxilia vítimas de violência doméstica a reconstruírem suas vidas em um ambiente ao qual seus violadores não cheguem.

No Egito, um dos maiores articuladores da revolução foi um anônimo conhecido como ElShaheed (mártir, em português), que controla uma página no Facebook denominada “We Are All Khaled Said”, que possui centenas de milhares de seguidores[21].

Já a Constituição do Brasil, por outro lado, proíbe expressamente o anonimato. Aproveitando a brecha gerada pela lei suprema, será apresentado neste mês de fevereiro de 2011 um projeto de lei de autoria do senador Magno Malta que prevê a ilegalidade de pseudônimos, também conhecidos como perfis falsos, na internet.  Magno Malta inspirou-se no exemplo da Califórnia, que, por sua vez, acaba de aprovar uma lei que prevê multa e prisão para quem utilizar perfil falso na internet.

No Brasil, todos os que utilizam a internet precisam se identificar junto ao seu provedor e incluir CPF e endereço, entre outros dados. E em São Paulo, a lei 12.228/06, promulgada por Geraldo Alckmin, obriga cybercafés a manterem um cadastro completo de todos os usuários, incluindo o equipamento utilizado e os horários detalhados[22], e prevê multa de até dez mil reais.

A justificativa dos inimigos do anonimato on-line é quase sempre a de que o anonimato “dificulta a identificação de criminosos virtuais”.

As determinações legais, no entanto, não inibem os chamados “criminosos virtuais”.  Como dizia meu pai, ministro Helio Beltrão, “a excessiva exigência burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os desonestos, que são especialistas em falsificar documentos”. 

A frase é válida para o mundo virtual de hoje. Para obter-se o anonimato on-line (com boas ou más intenções), não é necessário mais que alguns recursos tecnológicos criativos, ou documentos falsos (ou de “laranjas”) para registro junto ao seu provedor de acesso ou de hospedagem.  Desta forma, há proteção caso o governo resolva perseguir o anônimo, o que não ocorre com aqueles que seguem a legislação fielmente.

Não há dúvida: a proibição ao anonimato tem como resultado principal a inibição do discurso livre e desimpedido, por meio do constrangimento dos honestos.

Normas sobre o conteúdo

O próximo vagão do longo trem de abusos parece ser o estabelecimento de normas para reger o conteúdo “apropriado” ou “equitativo”.

A censura on-line é normalmente justificada como meio necessário para conter discursos ou imagens considerados “criminosos”, como, por exemplo, os discursos discriminatórios, a obscenidade, a “apologia” ao crime, o cyberbullying,[23] discursos subversivos à pátria, discursos incitando o ódio, desrespeito a crenças religiosas, discursos relacionados à segurança nacional.

Não há dúvida de que a maioria de nós considera inapropriados vários entre os casos listados acima, mas isso não quer dizer que eles devam ser considerados ilegais ou criminosos.  Um crime deve pressupor a existência de uma vítima, que tenha sofrido dano físico à sua pessoa ou propriedade (ou uma ameaça clara e presente de dano).  Um “crime sem vítima” não deveria ser considerado crime.

Parece-me um atentado ao bom senso considerar que conjuntos de palavras ou meras imagens caracterizem crimes por si só. Palavras e imagens podem conter evidência de crime, como, por exemplo, uma confissão de um assassinato ou uma fotografia de um estupro. No entanto, palavras ou imagens não constituem um crime em si próprias e, portanto, sua publicação não deveria ser restrita.

Como dito acima, uma vez estabelecidos os dispositivos legais, a tendência natural dos governos é usá-los de forma mais agressiva e abrangente do que o pretendido e declarado à época de sua promulgação. A tipificação dos supostos crimes virtuais listados acima é, por sua natureza, arbitrária e vaga. O que deve ser considerado “discriminatório”, por exemplo?  E o que poderia caracterizar uma “incitação de ódio”?  As lacunas dessas definições são em grande medida apropriadas pelos governos em geral tendo em vista seu próprio interesse.

No Canadá, uma comissão denominada Comissão Canadense de Direitos Humanos (CCDH) tem o poder de processar aquele que publicar na internet algo “que possa expor um indivíduo à aversão ou menosprezo“. A falaciosa teoria por trás dessa norma parece ser a de que palavras “danosas” necessariamente levam a atos danosos.  Dado o caráter vago e arbitrário da legislação, a comissão tem obtido cem por cento de condenação em seus processos. Cada vez mais a CCDH tem usado seu poder de censura como arma política, perseguindo cristãos e conservadores, entre outros.

Também no Canadá ganhou relevância o caso em que a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania de Alberta (CDHCA) — cujo nome parece ser pinçado ipsis literis do romance A Revolta de Atlas, de Ayn Rand — perseguiu o ex-editor-chefe Ezra Levant, da revista Western Standard, que escreveu uma longa matéria que incluiu algumas das charges de Maomé publicadas anteriormente por um jornal dinamarquês.  O processo durou três anos, e Ezra foi absolvido, mas sua defesa custou ao editor US$100.000 e seu emprego.  Ele atribui sua absolvição às imagens que ele fez de seu interrogatório e que tiveram 400.000 visualizações no YouTube em poucos dias.

O governo da Austrália, por sua vez, instituiu uma blacklist contendo 1.370 sites, que remete ao índice de livros banidos na Idade Média. Enquanto se aguarda a aprovação da lei, que prevê multa de US$11.000 por dia a quem acessar algum dos sites, os provedores de internet podem (devem?) aderir ao projeto-piloto voluntariamente. Em tese, não se conhecem os sites que oficialmente integram a lista, uma vez que são secretos. Um cidadão, portanto, poderia sofrer multa, sem se dar conta da contravenção cometida, ao acessar um site de uma lista secreta. A lista — que, segundo o governo, contém 674 sites relacionados à pornografia infantil e os demais relacionados a sexo ou temas adultos[24] — foi posteriormente revelada ao WikiLeaks, e constatou-se que contém sites de um dentista, de uma operação de aluguel de empilhadeiras na Holanda e de um canil, erros óbvios dos burocratas. A lista, que foi vendida à população como um esforço para “conter a pornografia infantil”, já está desvirtuada, e contém inclusive um site sobre opiniões sobre o aborto.

A Tailândia também instituiu uma blacklist secreta com o mesmo objetivo declarado de conter a pornografia infantil. Mas em apenas alguns meses já continha 1.200 sites banidos por criticar a família real. Vários outros países estão passando por trajetórias similares.

Outras formas de censura

Uma medida que levanta preocupação é o Acordo de Comércio Anti-Pirataria (chamado de ACTA).  Tal acordo está sendo costurado por países desenvolvidos com o objetivo de alcançar novos níveis de sanções em propriedade intelectual, com destaque para o âmbito da internet.  Um de seus objetivos é intensificar a coobrigação e a responsabilidade legal dos provedores de internet, para que estes ativamente identifiquem e filtrem o conteúdo das informações que circulem por sua rede.  Certamente isso levanta sérias questões não somente para a censura, mas também para os direitos à liberdade e à privacidade.

Similarmente, em diversos países, provedores de hospedagem ou blogueiros têm-se tornado co-responsáveis pelo conteúdo disponibilizado nas páginas hospedadas ou administradas por eles. Esse artifício centraliza a responsabilidade nas mãos de algumas poucas organizações e indivíduos visíveis, aos quais os governos podem facilmente identificar e ameaçar com punições.

Recentemente, o senador dos Estados Unidos Joe Lieberman contatou empresas como a Amazon para “solicitar” explicações de seu relacionamento com o site WikiLeaks.  Nos dias seguintes ao contato do senador, diversas empresas além da própria Amazon, como PayPal, eBay, Mastercard, Visa e outras declararam haver descontinuado seus serviços ao WikiLeaks após comunicação do Departamento de Estado indicando que tais serviços seriam “ilegais”.  Ainda que não possua amparo legal, o exemplo americano mostra que, quanto maior o poder do governo sobre o setor privado, maior potência possuem eventuais ameaças tácitas a organizações privadas.

Conclusão

Os acontecimentos recentes, como a revolução no Egito, tiraram quaisquer dúvidas sobre o vital papel que a disseminação livre e desimpedida de ideias, com o auxílio da tecnologia e da internet, pode ter na conquista de mais justiça e liberdade.

Deixaram claro, todavia, que os governos e os interesses especiais não ficarão passivos e lutarão ferozmente, ainda que de forma dissimulada, para conter pensamentos dissidentes.  Uma eventual sonolência da população significará a lenta e contínua perda dos benefícios que temos obtido com o fluxo livre de ideias e informação via internet.  Por outro lado, uma população assertiva e ciente de seu poder como indivíduos soberanos, a exemplo dos revolucionários egípcios, pode reverter as intrusões governamentais já estabelecidas e tomar conta de seus destinos.  

Por conta da liderança de tunisianos e egípcios, vários povos sedentos de liberdade e justiça consideram hoje factível e desejável o que antes julgavam impossível. Outros, no entanto, permanecem anestesiados e incrédulos quanto ao que se pode alcançar.  Espero que nós brasileiros sejamos parte do primeiro time e que façamos coro ao escritor Michael Kinsley, que afirmou: “os limites da livre expressão não podem ser determinados pelas suscetibilidades daqueles que não acreditam nela“.

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Notas

[1] A população da Birmânia é de cerca de 60 milhões de habitantes.

[2] O dia 25 de janeiro foi o primeiro dia das manifestações, e uma data escolhida a dedo pelos organizadores do protesto.  O dia 25 de janeiro recentemente havia sido decretado feriado por Mubarak, e denominado o Dia Nacional da Polícia.  A polícia foi o principal órgão de repressão do regime.

[3] Os cristãos fizeram cordão protetor dos muçulmanos nos momentos de preces.

[4] A Vodafone veio a público somente dez dias depois, e declarou que as mensagens foram veiculadas por ordem do governo.  Adicionalmente, declarou que estava obrigada a veicular, pois caso contrário cometeria uma ilegalidade.

[5] Também chamados de castigatores, os censores podiam, além de determinar se ações individuais estavam de acordo com os bons costumes (independente da lei), impor os seguintes atos: a) proibir alguém de permanecer solteiro, quando o casamento e a reprodução fossem do interesse do governo; b) proibir um determinado tipo de trabalho (teatro, por exemplo); c) punir aqueles que não cuidassem devidamente de sua plantação, entre outros.

[6] Foi instituída uma lista de livros proibidos a partir de então, que só foi formalmente abolida pela Igreja Católica em 1966, por determinação do Papa Paulo VI.

[7] Entre inúmeros controles, os editores de livros e jornais necessitavam de licenças de operação, que poderiam ser revogadas a qualquer tempo pelo governo, que podia inclusive sujeitar os proprietários à prisão.  O irmão mais velho de Benjamin Franklin, James, chegou a ficar preso por um mês.

[8] Fonte: Pew Research Center for the People & the Press.  A internet só é superada pela televisão, com 66%.  Jornais são fonte para 31%, e rádio, para 16%.  A soma supera 100% porque os entrevistados podem indicar mais de uma fonte.

[9] Nessa faixa etária, a internet é fonte de notícias para 56% dos entrevistados, e a televisão é fonte para 55%.

[10] Rupert Murdoch acaba de lançar um “jornal” – The Daily – disponível apenas no mundo virtual, via iPad.   O custo de uma edição é cerca de R$0,25.

[11] No segmento de livros, por exemplo, a tecnologia de print-on-demand viabilizou o chamado self-publishing, ou seja, as publicações independentes de baixo volume por autores desconhecidos.  O print-on-demand também viabiliza edições com baixas tiragens: todos os dezessete livros publicados até agora pelo Instituto Mises Brasil fazem uso dessa tecnologia.

[12] Os liberais e libertários formam um nicho que certamente se beneficia das barreiras à entrada declinantes. Pessoalmente, posso atestar que o Instituto Mises Brasil (e possivelmente outras organizações similares) não existiria com o escopo e o tamanho atuais não fosse a internet.

[13] IP é o endereço atribuído a cada aparelho (computador, celular, impressora, etc.) de uma rede que se comunica por protocolo internet, e que portanto é indispensável para navegar na internet.

[14] Firewall é um componente de uma rede que bloqueia acessos não autorizados, ao passo em que permite os acessos autorizados.

[15] A intranet birmana é jocosamente denominada de MWW, ou Myanmar Wide Web.

[16] Aung San Suu Kyi voltou ao país em 1988 para cuidar de sua mãe enferma, e chegou a tempo de presenciar e participar dos protestos pela democracia de agosto de 1988.  Ela foi presa sem julgamento em 1989, e permaneceu em prisão desde então, por praticamente todo o tempo, até sua libertação há alguns meses, em novembro de 2010.

[17] Em 2010, foram considerados “inimigos da internet”, pela organização Reporters Without Borders, os seguintes países: Birmânia, China, Cuba, Egito, Irã, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Síria, Tunísia, Turquemenistão e Uzbequistão.

[18] Tais “comentaristas” são conhecidos como o “Partido dos 50 Centavos”.  Procuram conduzir e influenciar eventuais discussões antigovernamentais ou “sensíveis” na direção da “linha do partido”. Recentemente, o Partido dos 50 Centavos tem atuado internacionalmente em vários sites de grande audiência fora da China. 

[19] A censura, claro, nunca é a justificativa declarada pelo governo para a implementação da lei.

[20] Não há nos Estados Unidos, no entanto, um direito líquido e certo à proteção de suas fontes jornalísticas em cortes federais. Há diversos jornalistas condenados e presos por se recusarem a revelar a fonte de documentos governamentais confidenciais ou sensíveis.  A tecnologia do WikiLeaks e outros atende a essa demanda por proteção das fontes.

[21] A autoria da página no Facebook tem sido atribuída ao executivo do Google, o egípcio Wael Ghonim.

[22] A lei exige nome completo, data de nascimento, endereço completo, telefone, número do RG, e proíbe o acesso em caso de dados incompletos ou não apresentação do RG.

[23] Vagamente definido como “o uso da internet ou outros aparatos para enviar textos ou imagens com a intenção de constranger ou prejudicar a imagem de terceiros”.

[24] Na rubrica “temas adultos”, já há centenas de sites de poker.


Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

Fonte: Artigo extraído do XV volume da série “Pensamentos Liberais”, livro lançado em 4 de abril de 2011 pelo IEE.

Uma grande dose de Adam Smith é exatamente o que a Argentina precisa

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Foto: Francisco Ghisletti/Unsplash

Em janeiro de 2007, o então recém reeleito Hugo Chávez enviou o que o The New York Times descreveu como uma “mensagem assustadora aos investidores estrangeiros”.

“Que seja nacionalizado”, disse o presidente venezuelano sobre a CANTV, o maior provedor de telecomunicações do país. “Tudo o que foi privatizado, que seja nacionalizado.”

Nos anos seguintes, Chávez cumpriria a sua palavra. O socialista reforçou o seu controle sobre a economia da Venezuela ao nacionalizar várias indústrias, incluindo a mineração de ouro, o setor bancário e os transportes.

Embora muitos ocidentais tenham aplaudido a medida, o movimento de nacionalização de Chávez seria desastroso.

O produto interno bruto da Venezuela, que era de US$ 316 bilhões em 2008, caiu para US$ 288 bilhões em 2016. Quando o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, acelerou a expansão da oferta monetária da Venezuela para tentar estimular o crescimento econômico, o PIB caiu ainda mais e a hiperinflação rapidamente chegou. O banco central da Venezuela estima que, entre 2016 e 2019, a Venezuela sofreu uma inflação de pouco menos de 54 milhões por cento.

Em 2019, 96% dos venezuelanos viviam na pobreza e 79% viviam na pobreza extrema, provocando um êxodo em massa de cerca de 4,6 milhões de venezuelanos.

Na Argentina hoje, algo muito diferente está acontecendo.

A Argentina, a segunda maior economia da América do Sul, atrás apenas do Brasil, viu a sua taxa de inflação anual atingir 161% em novembro, uma consequência da expansão maciça da sua oferta monetária.

Mas os argentinos escolheram um caminho diferente.

Em novembro, o país elegeu o libertário Javier Milei como seu novo presidente. E enquanto Hugo Chávez disse “tudo o que foi privatizado, que seja nacionalizado”, Milei está essencialmente dizendo o contrário: tudo o que foi nacionalizado, que seja privatizado.

Milei não parou por aí. Em um recente anúncio televisivo, ele disse que iria “revogar as regras que impedem a privatização de empresas estatais”.

Milei começou cortando pela metade o número de ministérios federais na Argentina, reduzindo-os de 18 para nove. Isto foi seguido por uma enorme desvalorização cambial.

Estas palavras foram apoiadas por um decreto com 300 medidas destinadas a desregulamentar os serviços de internet, eliminar vários controles governamentais de preços, revogar leis que desencorajam o investimento de capital estrangeiro, abolir o observatório de preços do Ministério da Economia e “preparar todas as empresas estatais para serem privatizadas”.

Para completar, Milei apresentou um projeto de lei de 351 páginas que visa o estado regulador da Argentina e concederia poderes de emergência a Milei “até 31 de dezembro de 2025”.

Dar poderes de emergência a qualquer presidente não é pouca coisa, mesmo durante uma crise genuína. Embora o projeto de lei de Milei se destine a restringir o poder do Estado e não a expandi-lo – um contraste notável com o paradigma típico de resposta a crises –, a história e os acontecimentos recentes em El Salvador mostram como os poderes de emergência podem ser abusados e usados para violar os direitos humanos e a liberdade.

Não está claro se Milei conseguirá cumprir toda a sua agenda, mas há motivos para otimismo.

A sua impressionante eleição é em si uma prova de que os argentinos estão ávidos por mudanças. Ele já demonstrou um pragmatismo impressionante aliado ao seu inegável talento político, cercando-se de uma série de talentosos especialistas em política. Isto inclui Federico Sturzenegger, um antigo economista-chefe do banco central da Argentina que há duas décadas conseguiu recuperar o falido Banco da Cidade de Buenos Aires. As reformas de Sturzenegger foram tão eficazes que se tornaram um estudo de caso em Harvard.

O sucesso não é de forma alguma certo, é claro.

A recuperação de décadas de peronismo – uma mistura de socialismo, nacionalismo e fascismo, que dominou o sistema político argentino durante anos – não acontecerá da noite para o dia. E a classe política da Argentina passou os últimos anos piorando uma situação que já era ruim.

Ainda assim, o grande economista Adam Smith observou certa vez que a chave para a prosperidade econômica é surpreendentemente simples.

“Pouco mais é necessário para levar um Estado ao mais alto grau de opulência a partir da mais baixa barbárie, mas paz, impostos baixos e uma administração tolerável da justiça”, disse o autor de A Riqueza das Nações.

Milei sabe disso. Ele não apenas leu Smith (além de economistas da Escola Austríaca, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises). Em um perfil de 2017, ele se autodenominou “herdeiro de Adam Smith”.

Uma forte dose de Adam Smith é precisamente o que a Argentina precisa, e Milei diagnosticou corretamente a aflição da outrora próspera economia da Argentina.

“O estado não cria riqueza; ele apenas a destrói”, disse Milei em uma entrevista amplamente vista em 2023.

A própria trajetória econômica dos Estados Unidos é mais do que alarmante, razão pela qual os americanos deveriam prestar atenção aos acontecimentos na América do Sul.

Nas próximas décadas, à medida que a dívida federal continua aumentando, os pagamentos de juros sobre a dívida federal crescem como uma bola de neve e o poder de compra do dólar diminui ainda mais, é provável que enfrentemos uma escolha semelhante à dos venezuelanos e argentinos.

Escolheremos Chávez ou Milei?


Jon Miltimore é editor-chefe do website Intellectual Takeout.

Artigo originalmente publicado em FEE.org

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto O Pacificador.

O que acontece quando as empresas atendem aos planejadores em vez dos consumidores

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Foto gerada por AI

Recentemente, a Ford anunciou que estava reduzindo pela metade a meta de produção de seu veículo elétrico mais popular, a picape F-150 Lightning.

Bloomberg News relata que a principal fábrica da empresa em Dearborn, Michigan, pretende agora produzir 1.600 veículos por semana em 2024, abaixo dos 3.200 em 2023.

A mudança ocorre poucos meses depois que a Ford anunciou que estava reduzindo os preços do Lightning em US$ 10.000. E, embora a empresa tenha citado “custos mais baixos das matérias-primas das baterias e trabalho contínuo no dimensionamento da produção e dos custos” para o seu corte de preços, o fato é que está se tornando dolorosamente óbvio que a baixa procura de veículos elétricos (EVs) foi o principal catalisador.

Durante o último verão americano, inúmeras notícias mostraram que os fabricantes tinham sobrestimado enormemente a procura de veículos elétricos no mercado, evidenciado por um enorme excesso em lotes de concessionárias.

Muitos especularam que o montante excedente resultou da restrição da oferta monetária após uma série de aumentos das taxas de juros do Federal Reserve. O problema com esta hipótese é que o excesso de EVs era elevado mesmo em comparação com o de carros movidos a gasolina.

Conforme relatado pela Axios na época, o fornecimento de EVs para 92 dias nos lotes das concessionárias era “quase o dobro da média do setor”.

Investimento maciço de capital é um erro?

Nem se precisa dizer que este não era o plano.

Após um ano recorde de vendas de veículos elétricos em 2021, muitos fabricantes de automóveis apostaram alto no futuro dos veículos elétricos. A Ford, por exemplo, anunciou em 2022 que aumentaria os gastos com veículos elétricos para 50 bilhões de dólares até 2026 – um aumento de mais de 50% – e criaria uma divisão de veículos elétricos totalmente nova.

Em retrospectiva, a decisão da Ford parece absurda, tendo em conta a queda na procura de veículos eléctricos. Mas, para ser justo, as coisas pareciam muito diferentes no início de 2022. Os EVs registravam um segundo ano consecutivo de recorde de vendas e poucos analistas previam que essa tendência perderia força em 2023.

Pelo contrário, em abril, a Agência Internacional de Energia divulgou um relatório que projetava um aumento de 35% nas vendas globais de veículos elétricos em 2023, citando a forte procura do mercado “na China, na Europa e nos Estados Unidos”.

Além disso, a Ford poderia contar com incentivos fiscais governamentais para impulsionar a procura nos EUA, onde os consumidores são elegíveis para receber até 7.500 dólares em créditos fiscais na compra de um novo EV.

Apesar do incentivo fiscal, os consumidores não estão adotando EVs tão rapidamente como os analistas projetaram, prevendo-se que os EV representem apenas 9% das vendas de veículos leves em 2023, de acordo com o EV Hub, um projeto de política pública da Atlas que monitoriza vendas de EVs.

Os trade-offs dos EVs

A notícia de que o mercado de EVs está em dificuldades provavelmente emociona algumas pessoas e irrita outras.

Em certo sentido, isso é estranho. Por que os consumidores torceriam pelo sucesso ou fracasso de um produto? Mas faz mais sentido quando percebemos que os veículos elétricos se tornaram, até certo ponto, um símbolo político, defendido por aqueles que os veem como um produto virtuoso que pode proteger a humanidade das alterações climáticas e contestado por muitos que se ressentem do seu status fiscal favorecido.

Deixando a política de lado, não há nada de intrinsecamente errado com os veículos elétricos. Muitos EVs são fantásticos, embora todos tenham vantagens e desvantagens, como qualquer produto.

Por exemplo, o Tesla Model Y Long Range tem aceleração incrível (vai de zero a 100 em aproximadamente 4,8 segundos) e velocidade máxima impressionante (217 mph). Tem uma autonomia sólida (530 quilômetros), acomoda até sete pessoas e pode até dirigir sozinho.

Os contras? Bem, o preço de um Modelo Y começa em US$ 48.000. Esse não é, de longe, o veículo mais caro da Tesla – seu Modelo X Plaid começa com o dobro disso –, mas não é barato, e o preço só aumenta com mais acompanhamentos.

A inacessibilidade não é a única desvantagem dos EVs (mais sobre isso mais tarde), mas é uma das principais razões pelas quais os americanos têm demorado a adotar EVs, mostram muitas evidências.

“Observamos os preços dos veículos elétricos durante 13 anos nos EUA e, em dólares ajustados pela inflação, o preço médio de um EV está subindo, e não caindo”, disse Ashley Nunes, pesquisadora associada sênior da Harvard Law School, em uma reportagem da BBC em novembro. “Dependendo do dia, uma diferença entre US$ 15.000 e US$ 20.000… é muito fácil ver qual opção [os consumidores] irão selecionar”.

Existem outros trade-offs, é claro. Não é apenas que os EVs tendem a ter um autonomia muito menor do que os carros movidos a gasolina. Há também a questão de onde se carregará o veículo quando ele estiver com pouca energia.

Este é um grande obstáculo para os americanos. Um estudo realizado pelo Energy Policy Institute da Universidade de Chicago e pelo Associated Press-NORC Center for Public Affairs Research descobriu que 77% dos entrevistados citaram a falta de estações de carregamento como motivo para não comprar um EV, perdendo apenas para o alto custo (83%).

Esta preocupação é justificada.

Uma análise da McKinsey & Company mostra que os EUA precisariam expandir a sua infraestrutura de carregamento cerca de 20 vezes para ter estações de carregamento suficientes para cumprir a meta do governo federal de fazer com que os EVs representem 15% de todos os veículos até 2030.

Incompetência grosseira?

Alguns poderão considerar a relutância dos consumidores norte-americanos em adotar veículos eléctricos mais rapidamente como uma falha no sistema econômico americano, mas na verdade é um ponto forte.

A economia, acima de tudo, é o estudo de como os recursos escassos são alocados. Dado que as economias são infinitamente complexas, os recursos são atribuídos de forma mais eficiente através das forças de mercado, que envolvem compradores e vendedores que possuem conhecimento local tomando decisões racionais (como não comprar um EV se não tiver condições para comprá-lo ou abastecê-lo de forma confiável).

Uma rápida olhada na história e uma compreensão básica da economia mostram que o planejamento central nunca poderá igualar a eficiência dos mercados, e esta tese é apoiada pelos esforços desajeitados do governo federal para coagir os americanos a utilizarem EVs.

Apesar de o governo federal renunciar a centenas de milhões de dólares todos os anos devido a créditos fiscais para novas compras de veículos eléctricos, isso demonstrou uma grande incompetência no fornecimento da infraestrutura necessária para apoiar estes veículos.

A Lei de Investimentos em Infraestrutura e Empregos do presidente Biden, aprovada em 2021, alocou US$ 7,5 bilhões em financiamento para infraestrutura de carregamento. Seu objetivo era construir 500.000 estações públicas de carregamento de veículos elétricos nos EUA.

Mas, como informou o Politico no início de dezembro, nem uma única estação de carregamento foi construída com esta iniciativa. (Zero!) Embora muitos estados tenham recebido contratos, apenas dois – Pensilvânia e Ohio – iniciaram as obras.

Além disso, o governo federal está ativamente impedindo a construção de estações de carregamento talvez no local mais óbvio e conveniente: paradas para descanso.

A desvantagem ambiental dos veículos elétricos

Alguns poderão argumentar que esta ineficiência é lamentável, mas mesmo assim necessária, uma vez que os seres humanos devem ser afastados dos combustíveis fósseis para salvar a humanidade das alterações climáticas, mas este argumento falha por várias razões.

Para começar, os EVs têm a sua própria pegada de carbono, e esta não é pequena. Na verdade, os EVs requerem muito mais CO2 para serem produzidos do que os carros movidos a gasolina.

Há alguns anos, pesquisadores alemães estimaram que seriam necessárias 13,6 toneladas de CO2 para produzir uma única bateria Tesla. Por sua vez, os executivos da Volvo admitiram que o seu popular C40 Recharge deve percorrer cerca de 112.600 quilômetros antes que o seu impacto de carbono seja inferior ao da sua contraparte movida a gasolina (a menos que funcione com eletricidade produzida exclusivamente a partir de energia eólica, o que não vai acontecer).

A elevada pegada de carbono dos EVs pode ser compensada se os veículos circularem durante tempo suficiente, porque geram menos CO2 durante o seu ciclo de vida. Mas não importa como se analisam os dados, é evidente que os EVs não são a panaceia verde que muitos passaram a acreditar. O Wall Street Journal concluiu que uma mudança completa de carros movidos a gasolina para veículos elétricos reduziria as emissões globais de CO2 em cerca de 0,18%.

Além disso, os EVs apresentam outros trade-offs ambientais que raramente recebem atenção, tais como as grandes quantidades de cobre, lítio, cobalto e outros minerais que requerem mineração a céu aberto e outros processos intensivos em terra (e mão-de-obra) para serem desenterrados.

O verdadeiro “capitão” do navio

O resultado final é que o mercado de veículos elétricos dos EUA está uma bagunça, algo que muitos analistas dizem que vai piorar antes de melhorar. E fabricantes de automóveis como a Ford, que apostam alto no futuro dos veículos elétricos, provavelmente enfrentam dificuldades, pelo menos no curto prazo.

Não precisava ser assim.

A tecnologia dos EVs – especialmente motores e baterias – está melhorando rapidamente, e um mercado para veículos elétricos provavelmente teria surgido mesmo sem as muitas intrusões federais que adicionaram confusão ao mercado.

A decisão da Ford é um lembrete importante de quem é o verdadeiro chefe numa economia de livre mercado. Não é a Ford. E certamente não é o governo federal.

“Os capitalistas, os empresários e os agricultores são fundamentais na condução dos assuntos econômicos. Eles estão no comando e dirigem o navio. Mas eles não são livres para moldar o seu curso”, explicou o famoso economista Ludwig von Mises na sua obra seminal Burocracia. “Eles não são supremos, são apenas timoneiros, obrigados a obedecer incondicionalmente às ordens do capitão. O capitão é o consumidor”.

A Ford faria bem em começar a ouvir os verdadeiros capitães da economia e prestar menos atenção às promessas dos políticos e burocratas que tentam guiar o navio.


Jonathan Miltimore é editor-chefe da FEE.org e redator sênior da AIER. Seus textos foram tema de artigos na revista TIME, The Wall Street Journal, CNN, Forbes, Fox News e Star Tribune.

Fonte: AIER – American Institute for Economic Research

O que o Estado é e o que o Estado não é

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Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O que o Estado não É

O estado é quase universalmente considerado uma instituição de serviço social. Alguns teóricos veneram o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais. Porém quase todos o consideram um meio necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado contra o “setor privado” e que frequentemente ganha essa disputa pelos recursos. Com o advento da democracia, a identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós somos o governo” ou “nós somos o estado”.

O termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política.  Se “nós somos o estado”, então qualquer coisa que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como também “voluntário” da parte do respectivo indivíduo.  Se o estado incorre numa dívida pública que tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está “fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu nada de lamentável.

Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi voluntário da sua parte.  Não seria necessário insistir mais neste ponto; no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em maior ou menor grau.

Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.  O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas1.  Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada2.  Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.

Se, então, o estado não somos “nós”, se ele não é a “família humana” se reunindo para decidir sobre os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é afinal? Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter o monopólio do uso da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da coerção.

Enquanto os outros indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça de prisão e pelo uso das armas3.  Depois de usar a força e a violência para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus súditos. Poderíamos pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.

O que o Estado É

O ser humano nasce indefeso e, como tal, precisa utilizar a sua mente para aprender a como obter os recursos que a natureza lhe fornece e a como transformá-los (por exemplo, através do investimento em “capital”) em objeto e em locais de modo que possam ser utilizados para a satisfação das suas necessidades e para a melhoria do seu padrão de vida. A única forma por meio da qual o ser humano pode fazer isto é através do uso da sua mente e da sua energia para transformar os recursos (“produção”) e da troca destes produtos por produtos criados pelos outros.  O ser humano descobriu que, por meio do processo de troca mútua e voluntária (comércio), a produtividade — e, logo, o padrão de vida de todos os participantes desta troca — pode aumentar significativamente. Portanto, o único caminho “natural” para o ser humano sobreviver e alcançar a prosperidade é utilizando sua mente e energia para se envolver no processo de produção-e-troca.  Ele realiza isto, primeiro, encontrando recursos naturais, segundo, transformando-os (“misturando seu trabalho a eles”, tal como disse John Locke), fazendo deles a sua propriedade individual, e depois trocando esta propriedade pela propriedade de outros que foi obtida de forma semelhante.

O caminho social ditado pelas exigências da natureza humana, portanto, é o caminho dos “direitos de propriedade” e do “livre mercado” de doações ou trocas de tais direitos. Ao longo deste caminho, o ser humano aprendeu a evitar os métodos “selvagens” da luta pelos recursos escassos — de forma que A pudesse apenas adquiri-los à custa de B —, e, ao invés disso, aprendeu a multiplicar imensamente esses recursos por meio do processo harmonioso e pacífico da produção e troca.

O grande sociólogo alemão Franz Oppenheimer apontou para o fato de que existem duas formas mutuamente exclusivas de adquirir riqueza: a primeira, a forma referida acima, de produção e troca, ele chamou de “meio econômico”. A outra forma é mais simples, na medida em que não requer produtividade; é a forma em que se confisca os bens e serviços do outro através do uso da força e da violência. É o método do confisco unilateral, do roubo da propriedade dos outros. A este método Oppenheimer rotulou de “o meio político” de aquisição de riqueza.  Deve estar claro que o uso pacífico da razão e da energia na produção é o caminho “natural” para o homem: são os meios para a sua sobrevivência e prosperidade nesta terra.  Deve estar igualmente claro que o meio coercivo, explorador, é contrário à lei natural; é parasítico, pois em vez de adicionar à produção, apenas subtrai.

O “meio político” desvia a produção para um indivíduo — ou grupo de indivíduos — parasita e destrutivo; e este desvio não só subtrai da quantidade produzida como também reduz o incentivo do produtor para produzir além de sua própria subsistência.  No longo prazo, o ladrão destrói a sua própria subsistência ao diminuir ou eliminar a fonte do seu próprio suprimento.  Mas não só isso: mesmo no curto prazo, o predador age contrariamente à sua natureza como ser humano.

Estamos agora em uma posição que nos permite responder mais satisfatoriamente à questão: o que é o estado? O estado, nas palavras de Oppenheimer, é “a organização dos meios políticos”; é a sistematização do processo predatório sobre um determinado território4. Pois o crime é, no máximo, esporádico e incerto; já o parasitismo é efêmero e a coerciva ligação parasítica pode ser cortada a qualquer momento por meio da resistência das vítimas.  O estado, no entanto, providencia um meio legal, ordeiro e sistemático para a depredação da propriedade privada; ele torna certa, segura e relativamente “pacífica” a vida da casta parasita na sociedade5.

Dado que a produção tem sempre de preceder qualquer depredação, conclui-se que o livre mercado é anterior ao estado.  O estado nunca foi criado por um “contrato social”; ele sempre nasceu da conquista e da exploração.  O paradigma clássico é aquele de uma tribo conquistadora que resolveu fazer uma pausa no seu método — testado e aprovado pelo tempo — de pilhagem e assassinato das tribos conquistadas ao perceber que a duração do saque seria mais longa e segura — e a situação mais agradável — se ela permitisse que a tribo conquistada continuasse vivendo e produzindo, com a única condição de que os conquistadores agora assumiriam a condição de governantes, exigindo um tributo anual constante6.

Um dos métodos de nascimento de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da “Ruritânia do Sul”, um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um determinado território.

Cumprida a missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se “Rei do estado soberano e independente da Ruritânia do Sul”. E se ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à “família das nações”, e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na nobreza legítima do reino.

Notas:

1. Não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente, o “representante” numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.

2. Os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria. Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.

3 Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, Socialismo e Democracia) (New York: Harper and Bros., 1942), p. 198.

A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que. o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.

Ver também Murray N. Rothbard, “The Fallacy of the ‘Public Sector’”, New Individualist Review (Summer, 1961): 3ff.

4 Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 24-27:

Existem duas formas fundamentalmente opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho, na discussão que se segue, chamar ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de “meio econômico” para a satisfação das necessidades enquanto a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de “meio político”. O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou apropriados por roubo bélico.

5 Albert Jay Nock escreve de forma clara que:

o Estado reivindica e exercita o monopólio do crime. Ele proíbe o homicídio privado mas ele mesmo organiza o assassínio numa escala colossal. Ele pune o roubo privado mas ele próprio deita as suas mãos sem escrúpulos a tudo o que ele quer, seja propriedade dos seus cidadãos seja de estrangeiros.

Nock, On Doing the Right Thing, and Other Essays (New York: Harper and Bros., 1929), p.143

6 Oppenheimer, The State, p.15:

O que é, então, o Estado como conceito sociológico? O Estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.

E de Jouvenel escreveu: “o estado é na sua essência o resultado dos sucessos alcançados por um grupo de bandidos que se impôs a uma sociedade gentil e pacífica”. Bertrand de Jouvenel, On Power (New York: Viking Press, 1949) p.100-101.


Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

Fonte: Extraído dos dois primeiros capítulos do livro A Anatomia do Estado, de Murray N. Rothbard.

A aula de liberdade de Javier Milei no Fórum Econômico Mundial 2024

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“Boa tarde, muito obrigado: estou aqui hoje para lhes dizer que o Ocidente está em perigo; está em perigo porque aqueles que deveriam defender os valores do Ocidente se veem cooptados por uma visão de mundo que – inexoravelmente – leva ao socialismo e, consequentemente, à pobreza.

Infelizmente, nas últimas décadas, motivados por alguns desejos bem intencionados de querer ajudar os outros e outros motivados pelo desejo de pertencer a uma casta privilegiada, os principais líderes do mundo ocidental abandonaram o modelo de liberdade, por diferentes versões, do que chamamos de coletivismo.

Estamos aqui para lhes dizer que as experiências coletivistas nunca são a solução para os problemas que afligem os cidadãos do mundo, mas – pelo contrário – são a sua causa. Acreditem, não há ninguém melhor do que nós, argentinos, para testemunhar essas duas questões.

Quando adotamos o modelo de liberdade – lá em 1860 – em 35 anos nos tornamos a principal potência mundial, enquanto quando abraçamos o coletivismo, nos últimos 100 anos, vimos como nossos cidadãos começaram a ser sistematicamente empobrecidos, até caírem para o 140º lugar no mundo. Mas antes que possamos ter essa discussão, será importante que primeiro olhemos para os dados que sustentam por que não apenas o capitalismo de livre iniciativa não é apenas um sistema possível para acabar com a pobreza do mundo, mas é o único sistema – moralmente desejável – a fazê-lo.

Se considerarmos a história do progresso econômico, podemos ver como do ano zero ao ano 1800, aproximadamente, o PIB per capita do mundo permaneceu praticamente constante durante todo o período de referência. Se olharmos para um gráfico da evolução do crescimento econômico, ao longo da história humana, estaríamos olhando para um gráfico em forma de taco de hóquei, uma função exponencial, que permaneceu constante por 90% do tempo e dispara exponencialmente a partir do século XIX. A única exceção a essa história de estagnação veio no final do século XV, com a descoberta da América. Mas, com essa exceção, durante todo o período, entre o ano zero e o ano de 1800, o PIB per capita, em nível global, permaneceu estagnado.

Ora, não só o capitalismo gerou uma explosão de riqueza, a partir do momento em que foi adotado como sistema econômico, mas se analisarmos os dados, o que se observa é que o crescimento vem se acelerando, ao longo de todo o período.

Durante todo o período – de 1800 a 1800 – a taxa de crescimento do PIB per capita manteve-se estável em torno de 0,02% ao ano. Ou seja, praticamente nenhum crescimento; a partir do século XIX, com a Revolução Industrial, a taxa de crescimento aumentou para 0,66%. Nesse ritmo, dobrar o PIB per capita exigiria crescimento, em 107 anos.

Agora, se olharmos para o período entre 1900 e 1950, a taxa de crescimento acelera para 1,66%, ao ano. Não precisamos mais de 107 anos para dobrar o PIB per capita, mas de 66. E se pegarmos o período – entre 1950 e o ano 2000 – vemos que a taxa de crescimento foi de 2,1%, ao ano, o que significaria que em apenas 33 anos poderíamos dobrar o PIB per capita mundial. Essa tendência, longe de parar, ainda está viva hoje. Se pegarmos o período, entre 2000 e 2023, a taxa de crescimento acelerou novamente para 3%, ao ano, o que implica que poderíamos dobrar nosso PIB per capita no mundo em apenas 23 anos.

Agora, quando estudamos o PIB per capita, desde o ano de 1800 até os dias atuais, o que observamos é que, após a Revolução Industrial, o PIB per capita mundial se multiplicou por mais de 15 vezes, gerando uma explosão de riqueza que tirou 90% da população mundial da pobreza.

Nunca devemos esquecer que – no ano de 1800 – cerca de 95% da população mundial vivia na mais extrema pobreza, enquanto esse número caiu para 5% em 2020, antes da pandemia.

A conclusão é óbvia: longe de ser a causa de nossos problemas, o capitalismo de livre iniciativa, como sistema econômico, é a única ferramenta que temos para acabar com a fome, a pobreza e a miséria em todo o mundo. As evidências empíricas são inquestionáveis.

Por isso, como não há dúvida de que o capitalismo de livre mercado é superior – em termos de produção – a doxa de esquerda tem atacado o capitalismo por suas questões de moralidade, por ser – segundo eles – injusto.

Dizem que o capitalismo é ruim porque é individualista e que o coletivismo é bom porque é altruísta, com o outro. Consequentemente, lutam por justiça social, mas esse conceito, que – vindo do Primeiro Mundo – virou moda nos últimos tempos no meu país é uma constante no discurso político há mais de 80 anos. O problema é que a justiça social além de não ser justa, não contribui para o bem-estar geral; pelo contrário, é uma ideia intrinsecamente injusta porque é violenta; é injusta porque o Estado se financia através de impostos e os impostos são recolhidos de forma coerciva. Alguém  pode dizer que paga imposto voluntariamente? Isso significa que o Estado se financia por meio da coerção, e quanto maior a carga tributária, maior a coerção, menor a liberdade.

Aqueles que promovem a justiça social partem da ideia de que a economia como um todo é um bolo que pode ser distribuído de uma maneira diferente, mas esse bolo não é dado, é a riqueza que é gerada, no que – por exemplo – Israel Kirzner chama de processo de descoberta de mercado. Se o bem ou serviço oferecido por uma empresa não é desejado, essa empresa vai à falência a menos que atenda ao que o mercado está exigindo. Se você gerar um produto de boa qualidade a um preço bom e atraente, ele vai se sair bem e você vai produzir mais.

Então, o mercado é um processo de descoberta, no qual o capitalista encontra o rumo certo à medida que avança, mas se o Estado pune o capitalista por ter sucesso e o obstrui nesse processo de descoberta, ele destrói seus incentivos, e a consequência disso é que ele produzirá menos e o bolo será menor, gerando danos à sociedade como um todo.

O coletivismo – ao inibir esses processos de descoberta e ao dificultar a apropriação do que foi descoberto – amarra as mãos do empreendedor e o impossibilita de produzir melhores bens e oferecer melhores serviços a um preço melhor. Como pode ser, então, que a academia, as organizações internacionais, a política e a teoria econômica demonizem um sistema econômico que não só tirou da pobreza mais extrema cerca de 90% da população mundial – e fazê-lo cada vez mais rápido –, mas que também é justo e moralmente superior.

Graças ao capitalismo de livre iniciativa, hoje, o mundo está no seu melhor estágio. Nunca houve, em toda a história da humanidade, um tempo de maior prosperidade do que o que vivemos hoje. O mundo hoje é mais livre, mais rico, mais pacífico e mais próspero do que foi em qualquer outro momento da nossa história. Isto é válido para todos, mas particularmente para os países que são livres, onde se respeita a liberdade econômica e os direitos de propriedade dos indivíduos. Porque os países que são livres são 12 vezes mais ricos do que os que são reprimidos. Os 10% mais pobres dos habitantes de países livres, vivem melhor do que 90% da população de países reprimidos, tem 25 vezes menos pobres no formato padrão e 50 vezes menos no formato extremo. E se isso não bastasse, os cidadãos de países livres vivem 25% mais do que os cidadãos de países reprimidos.

Agora, para entender o que estamos aqui para defender, é importante definir do que estamos falando quando falamos de libertarianismo. Para defini-lo, volto às palavras do maior herói das ideias de liberdade, da Argentina, o professor Alberto Benegas Lynch Jr., que diz: “libertarianismo é o respeito irrestrito ao projeto de vida alheio, baseado no princípio da não agressão, em defesa do direito à vida, à liberdade e à propriedade, cujas instituições fundamentais são a propriedade privada, os mercados livres da intervenção estatal, a livre concorrência, a divisão do trabalho e a cooperação social”.

Em outras palavras, o capitalista é um benfeitor social que, longe de se apropriar da riqueza alheia, contribui para o bem-estar geral. Em suma, um empreendedor de sucesso é um herói.

Este é o modelo que estamos propondo para a Argentina do futuro. Um modelo baseado nos princípios fundamentais do libertarianismo: a defesa da vida, da liberdade e da propriedade

Ora, se o capitalismo de livre iniciativa e a liberdade econômica foram ferramentas extraordinárias para acabar com a pobreza no mundo, e estamos hoje no melhor momento da história da humanidade, então por que digo que o Ocidente está em perigo?

Digo que o Ocidente está em perigo precisamente porque nos países que deveriam defender os valores do livre mercado, da propriedade privada e das outras instituições do libertarianismo, setores do establishment político e econômico, uns por erros no seu quadro teórico e outros por ambição de poder, estão minando os fundamentos do libertarianismo, abrindo as portas ao socialismo e potencialmente condenando-nos à pobreza, miséria e estagnação.

Pois nunca se deve esquecer que o socialismo é sempre e em toda parte um fenômeno empobrecedor que fracassou em todos os países onde foi tentado. Foi um fracasso econômico. Foi um fracasso social. Foi um fracasso cultural. E também assassinou mais de 100 milhões de seres humanos.

O problema essencial no Ocidente hoje é que devemos enfrentar não apenas aqueles que, mesmo após a queda do muro e evidências empíricas esmagadoras, continuam a lutar pelo empobrecimento do socialismo, mas também nossos próprios líderes, pensadores e acadêmicos que, sob o disfarce de um quadro teórico falho, minam as bases do sistema que nos deu a maior expansão de riqueza e prosperidade de nossa história.

O referencial teórico a que me refiro é o da teoria econômica neoclássica, que desenha um instrumento que, sem querer, acaba sendo funcional à interferência do Estado, ao socialismo e à degradação da sociedade. O problema com os neoclássicos é que, como o modelo pelo qual se apaixonaram não se contrapõe à realidade, eles atribuem o erro a supostas falhas de mercado em vez de rever as premissas de seu modelo.

Sob o pretexto de uma suposta falha de mercado, são introduzidas regulamentações que apenas geram distorções no sistema de preços, que impedem o cálculo econômico e, consequentemente, a poupança, o investimento e o crescimento

Esse problema reside essencialmente no fato de que mesmo economistas supostamente defensores da liberdade não entendem o que é o mercado, porque, se o fizessem, rapidamente se veria que é impossível que algo como falhas de mercado exista.

O mercado não é uma curva de oferta e demanda em um gráfico. O mercado é um mecanismo de cooperação social onde trocas são realizadas voluntariamente. Portanto, dada essa definição, a falha de mercado é um oximoro. Não há falha de mercado.

Se as transações são voluntárias, o único contexto em que pode haver uma falha de mercado é se houver coação. E o único com capacidade de coagir de forma generalizada é o Estado, que tem o monopólio da violência. Consequentemente, se alguém considerar que há uma falha de mercado, recomendo que verifique se há intervenção estatal no meio. E se você achar que não há intervenção estatal no meio, sugiro que faça a análise novamente porque está definitivamente errado. Falhas de mercado não existem.

Um exemplo das supostas falhas de mercado descritas pelos neoclássicos são as estruturas concentradas da economia. No entanto, sem funções que apresentem crescente retorno à escala, cuja contrapartida são as estruturas concentradas da economia, não conseguiríamos explicar o crescimento econômico do ano de 1800 até o presente.

Perceba como é interessante. A partir do ano de 1800, com a população se multiplicando mais de 8 ou 9 vezes, a produção per capita cresceu mais de 15 vezes. Há retornos crescentes, que levaram a pobreza extrema de 95% para 5%. No entanto, essa presença de retornos crescentes implica estruturas concentradas, o que seria chamado de monopólio.

Como é possível que algo que gerou tanto bem-estar para os teóricos neoclássicos seja uma falha de mercado? Os economistas neoclássicos são incoerentes. Quando o modelo falha, você não precisa ficar com raiva da realidade, você tem que ficar com raiva do modelo e mudá-lo.

O dilema enfrentado pelo modelo neoclássico é que eles afirmam querer melhorar o funcionamento do mercado atacando o que consideram falhas, mas ao fazê-lo não apenas abrem as portas para o socialismo, mas também minam o crescimento econômico. Por exemplo, regular monopólios, destruir lucros e esmagar retornos crescentes destruiria automaticamente o crescimento econômico.

Em outras palavras, toda vez que você quer fazer uma correção de uma suposta falha de mercado, inexoravelmente, porque você não sabe o que é o mercado ou porque se apaixonou por um modelo fracassado, você está abrindo as portas para o socialismo e condenando as pessoas à pobreza.

No entanto, diante da demonstração teórica de que a intervenção estatal é nociva, e da evidência empírica de que ela fracassou – porque não poderia ser de outra forma – a solução que os coletivistas proporão não é maior liberdade, mas maior regulação, gerando uma espiral descendente de regulações até que estejamos todos mais pobres. E a vida de todos nós depende de um burocrata sentado em um escritório chique.

Dado o fracasso retumbante dos modelos coletivistas e os inegáveis avanços do mundo livre, os socialistas foram forçados a mudar sua agenda. Deixaram para trás a luta de classes baseada no sistema econômico para substituí-la por outros supostos conflitos sociais igualmente nocivos à vida comunitária e ao crescimento econômico.

A primeira dessas novas batalhas foi a briga ridícula e antinatural entre homem e mulher.

O Libertarianismo já estabelece a igualdade entre os sexos. A pedra fundamental do nosso credo diz que todos os homens são criados iguais, que todos nós temos os mesmos direitos inalienáveis concedidos pelo criador, entre os quais a vida, a liberdade e a propriedade

A única coisa que essa agenda do feminismo radical conseguiu é uma maior intervenção do Estado para dificultar o processo econômico, para dar trabalho a burocratas que não contribuem em nada para a sociedade, seja na forma de ministérios de mulheres ou de organizações internacionais dedicadas a promover essa agenda.

Outro dos conflitos que os socialistas colocam é o do homem contra a natureza. Eles argumentam que os seres humanos prejudicam o planeta e que ele deve ser protegido a todo custo, chegando ao ponto de defender mecanismos de controle populacional ou a agenda sangrenta do aborto.

Infelizmente, essas ideias nocivas permearam fortemente nossa sociedade. Os neomarxistas conseguiram cooptar o senso comum do Ocidente. Conseguiram isso graças à apropriação dos meios de comunicação, da cultura, das universidades e, sim, também das organizações internacionais.

Felizmente, cada vez mais de nós ousamos levantar a voz. Porque vemos que, se não combatermos essas ideias de frente, o único destino possível é que teremos cada vez mais Estado, mais regulação, mais socialismo, mais pobreza, menos liberdade e, consequentemente, um pior padrão de vida.

O Ocidente, infelizmente, já começou a trilhar esse caminho. Sei que pode soar ridículo para muitos sugerir que o Ocidente se voltou para o socialismo. Mas só é ridículo na medida em que se restringe à definição econômica tradicional de socialismo, que afirma que é um sistema econômico onde o Estado é dono dos meios de produção.

Esta definição deveria, para nós, ser atualizada às circunstâncias atuais. Hoje, os Estados não precisam controlar diretamente os meios de produção para controlar todos os aspectos da vida dos indivíduos.

Com ferramentas como emissão monetária, empréstimos, subsídios, controles de taxas de juros, controles de preços e regulamentações para corrigir as chamadas “falhas de mercado”, eles podem controlar os destinos de milhões de seres humanos.

É assim que chegamos ao ponto em que, sob diferentes nomes ou formas, boa parte das propostas políticas geralmente aceitas na maioria dos países ocidentais são variantes coletivistas.

Sejam elas declaradamente comunistas, socialistas, social-democratas, democratas-cristãos, neokeynesianos, progressistas, populistas, nacionalistas ou globalistas.

No final, não há diferenças substantivas: todas defendem que o Estado deve dirigir todos os aspectos da vida dos indivíduos. Todas defendem um modelo contrário ao que levou a humanidade ao progresso mais espetacular de sua história.

Viemos aqui hoje para convidar os outros países do Ocidente a regressarem ao caminho da prosperidade. A liberdade econômica, o governo limitado e o respeito irrestrito à propriedade privada são elementos essenciais para o crescimento econômico.
Esse fenômeno de empobrecimento produzido pelo coletivismo não é uma fantasia. Nem fatalismo. É uma realidade que nós, argentinos, conhecemos muito bem.

Porque a gente já viveu isso. Estivemos lá. Porque, como disse antes, desde que decidimos abandonar o modelo de liberdade que nos tornou ricos, estamos presos em uma espiral descendente onde somos cada dia mais pobres.

Já passamos por isso. E estamos aqui para alertá-los sobre o que pode acontecer se os países do Ocidente que enriqueceram com o modelo de liberdade, continuarem nesse caminho de servidão.

O caso argentino é a demonstração empírica de que não importa quão rico você seja, quantos recursos naturais você tenha, não importa quão qualificada seja a população, ou quão educada ela seja, ou quantas barras de ouro existam nos cofres do Banco Central.

Se forem tomadas medidas que dificultem o livre funcionamento dos mercados, a livre concorrência, os sistemas de preços livres, se o comércio for impedido, se a propriedade privada for violada, o único destino possível é a pobreza.

Para finalizar, quero deixar um recado a todos os empreendedores aqui presentes e àqueles que estão nos observando de todos os cantos do planeta.

Não vos deixeis intimidar nem pela casta política, nem pelos parasitas que vivem do Estado. Não se rendam a uma classe política que só quer se perpetuar no poder e manter seus privilégios.

Vocês são benfeitores sociais. Vocês são heróis. Vocês são os criadores do período mais extraordinário de prosperidade que já experimentamos. Que ninguém lhes diga que a sua ambição é imoral. Se você ganha dinheiro, é porque oferece um produto melhor a um preço melhor, contribuindo assim para o bem-estar geral.

Não ceda ao avanço do Estado. O Estado não é a solução. O Estado é o próprio problema.

Vocês são os verdadeiros protagonistas dessa história, e sabem que, a partir de hoje, têm um aliado inabalável na República Argentina.

Muito obrigado e viva a liberdade, car*&@¨!”

Assista ao vídeo na íntegra:


Fonte: Instituto Rothbard Brasil

Código de Defesa do Pagador de Impostos vira lei no Brasil

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João da Silva, proprietário de uma pequena loja de roupas, brigou recentemente com uma pessoa que, por coincidência, era fiscal do município. No dia seguinte, o fiscal foi à sua loja, o autuou e mandou fechar o empreendimento, alegando diversas violações e indo, inclusive, contra disposições do STJ e do STF.

João da Silva teve que recorrer contra essa decisão, mas perdeu tempo valioso e dinheiro com advogados e com seu estabelecimento fechado. Por estar pendente com o Fisco, perdeu benefícios financeiros importantes que tinha com a Prefeitura Municipal. Vitorioso ao final, João voltou à sua vida cotidiana sofrendo um grande abalo financeiro, enquanto o fiscal da Prefeitura Municipal seguiu sua vida normalmente.

Esse tipo de situação nunca mais acontecerá na cidade de Marechal Cândido Rondon, no Paraná. Isso porque virou lei o Código de Defesa do Pagador de Impostos (Lei Complementar nº 152/2023) no município, de autoria do Vereador Juca (MDB/PR), o primeiro aprovado e sancionado no Brasil.

Esse projeto, estruturado em parceria com o Gabinete Liberdade e o Ideias Radicais – empresas contratadas pelo Vereador para prestar assessoria legislativa – teve como base o PLP 17/2022, de autoria do Deputado Felipe Rigoni (UNIÃO/ES), que já foi aprovado na Câmara dos Deputados, mas está parado no Senado desde 2022.

Dentre as grandes inovações da Lei sancionada no município estão:

  • Necessidade de análise de correspondência entre o valor exigido por taxa e o custo da atividade para a instituição de taxas;
  • Permissão de assinatura digital ou eletrônica de documentos para serem entregues à Fazenda Pública;
  • Obtenção de reparação de danos patrimoniais e morais decorrentes de atos praticados por servidor público sem a observância da legislação tributária;
  • Necessidade de emissão de ordem de fiscalização antes de se proceder com um ato de fiscalização pelo fiscal do município, com algumas exceções;
  • Existência de processo administrativo ou judicial pendente não obstar a fruição de benefícios e incentivos fiscais, acesso a linhas de crédito, participação em licitações e exercício da atividade econômica;
  • Proibição de fiscais lavrarem auto de infração contrários às normativas e súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, sob pena de responsabilidade funcional do servidor.

Esta Lei é uma modificação completa da relação entre a Administração Pública e o pagador de impostos, que agora terá mais formas de se defender de arbitrariedades do Poder Público. A Prefeitura Municipal agora deverá punir o fiscal que atuar de forma contrária a julgados com entendimento já sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Com isso, fiscalizações e autuações sem sentido não serão parte do cotidiano no município, beneficiando o empresário que gera empregos e a própria Prefeitura Municipal, haja vista que diminuirá a quantidade de contencioso tributário e, por consequência, os esforços empreendidos pelo Poder Público para resolver essas situações também serão reduzidos e redirecionados para problemas mais importantes.

Além disso, esta lei moderniza os processos administrativos da Prefeitura Municipal, permitindo que sejam assinados eletronicamente os documentos necessários e intensifica os direitos que o pagador de impostos tem no tratado com o Poder Público.

De acordo com o Índice de Burocracia da América Latina de 2022, as micro e pequenas empresas gastam, em média, 180 horas com burocracia por ano no Brasil, o equivalente a 22,5 dias úteis. Isso sem contar que os processos tributários duram, em média, 19 anos no Brasil. Essa legislação auxiliará na redução de custos para a manutenção de uma empresa na cidade, permitindo que os gastos sejam poupados ou alocados de forma mais eficiente.

O Gabinete Liberdade, que presta serviços para o Vereador Juca (MDB/PR), autor do projeto, também atua com outros vereadores em 21 municípios, fazendo parte de um movimento a favor da desburocratização, do empreendedorismo e do liberalismo econômico no Brasil. Essa corrente pela facilitação do ambiente de negócios tomou espaço na política do país desde a eleição de 2018 com Jair Bolsonaro, responsável pela revogação de 57 mil normas e edição de normativas importantes, como a Lei de Liberdade Econômica, Lei da Desburocratização e os Cartórios Digitais.

Com isso, grupos que defendem a redução da carga tributária, a desburocratização e a facilitação da abertura de novas empresas têm crescido cada vez mais no país. O apoio a iniciativas semelhantes aparenta estar ganhando terreno no Brasil, sinalizando que o Código de Defesa do Pagador de Impostos de Marechal Cândido Rondon (PR) pode ser o primeiro, mas não será o único.


Matheus Schilling é advogado formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Diretor Jurídico do Gabinete Liberdade e do Ideias Radicais.

Fonte: Mises Brasil

O capitalismo é impessoal. Não é sem alma.

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Há muito o que gostar no recente ensaio de Richard Jordan na Law & Liberty , “ Romancing Creative Destruction ”. Mas também está infectado com uma falha notável, nomeadamente a afirmação de Jordan, completa com ênfase adicional, “o capitalismo não tem alma”.

Lida de forma restrita, esta afirmação é vazia de significado útil. O capitalismo não é uma criatura sensciente; não tem consciência nem consciência. Capitalismo é o nome que damos a uma forma particular de interação humana. Portanto, não é mais útil observar que “o capitalismo não tem alma” do que observar que “o tráfego automóvel não tem alma”.

Mas a “falta de alma” do capitalismo é reivindicada com tanta frequência, e por pessoas de todos os matizes ideológicos, que esta afirmação obviamente transmite algum significado substantivo para aqueles que a encontram.

Qual poderia ser esse significado? Eu acho que sei. A afirmação de que o capitalismo não tem alma reflete uma confusão entre “impessoal” e “sem alma”. O capitalismo apresenta, de fato, uma miríade de trocas impessoais, mas esta realidade não significa que o capitalismo não tenha alma.

O calor das interações pessoais

Entre pessoas que se conhecem intimamente, a assistência é oferecida por um sentimento de amor e de genuíno sentimento de solidariedade. As interações dos membros da família podem ser descritas como “trocas”, e as motivações para essas interações pessoais são talvez melhor compreendidas pelos analistas como estando enraizadas em disposições psicológicas que foram “escolhidas” pela seleção natural porque essas disposições promovem a sobrevivência de cada um dos membros da família. partes interagindo. No entanto, a experiência consciente de interagir com entes queridos e amigos não envolve qualquer sentido de pesar custos e benefícios – nenhum sentido de “troca” egoísta. Ajudamos nossos pais e filhos porque os amamos. Recebemos ajuda de nossos amigos por causa de seus sentimentos afetuosos por nós. E tanto dar como receber tal ajuda desperta emoções que nós, humanos, compreensivelmente, descrevemos como “calorosa”.

A doçura de experimentar tal amor e afeição, e de dar tal amor e afeição, não pode ser adequadamente expressa em palavras extraídas de livros didáticos de economia ou biologia. Valorizamos o toque pessoal e nos deleitamos sabendo que nós, como pessoas de carne e osso, somos cuidados por outras pessoas de carne e osso em particular.

Em pequenas comunidades, cujos membros raramente interagem com indivíduos que não conhecem pessoalmente, todas as interações comerciais apresentam fortes doses de conhecimento e emoção pessoais. O alfaiate Smith sabe que o dono da mercearia Jones não o enganará porque Smith e Jones são velhos amigos. Embora cada um ganhe economicamente com o comércio com o outro, cada um também ganha emocionalmente. Smith valoriza sua conversa na loja com Jones, que por sua vez aprecia a compra daquele pão extra por Smith – uma compra motivada, Jones está silenciosamente ciente, pelo conhecimento de Smith de que Jones está atualmente passando por uma fase financeira difícil.

Essas interações são pessoais. E eles são bons.

A Ordem Estendida do Mercado Capitalista

O comércio exclusivamente entre pessoas que se conhecem – mesmo quando totalmente não regulamentado pelo governo – não é, como tal, capitalismo. O capitalismo exige mais do que o governo permaneça em grande parte alheio aos detalhes dos processos econômicos; o capitalismo também envolve (1) uma tal abertura à mudança econômica que a inovação incessante é encorajada, e (2) uma vontade de obter lucros atendendo ao maior número de pessoas – e a uma população tão diversificada de pessoas – quanto possível. Sob o capitalismo, a divisão do trabalho – isto é, a especialização – é limitada não pelas ligações pessoais dos indivíduos ou pelas fronteiras fixadas pela tradição, mas (como Adam Smith observou famosamente), “pela extensão do mercado”.

Quanto maior o número de pessoas que interagem economicamente entre si, maior será a capacidade dos indivíduos, como produtores, de se especializarem. Esta maior especialização, por sua vez, aumenta a produção por pessoa. Mas a mesma condição que torna possível a ocorrência desta maior especialização também torna impossível a qualquer indivíduo nesta economia conhecer pessoalmente todos os outros indivíduos com quem interage economicamente. Como na economia global de hoje o número de pessoas com quem interagimos economicamente chega literalmente à casa dos milhares de milhões, a percentagem dessas pessoas com quem também interagimos pessoalmente é próxima de zero.

É portanto verdade que quase todos os motivos que motivam e orientam os milhares de milhões de ações humanas que diariamente tornam possível a nossa prosperidade moderna são exclusivamente “económicos” e não calorosos e pessoais. Quem quer que tenha saído da cama certa manhã, há algumas semanas, para levar da fazenda ao matadouro o porco que compartilhei no dia de Natal com a família e amigos, não me conhece, e eu não o conheço. Essa pessoa certamente contribuiu para a minha bela ceia de Natal, mas a motivação não foi o amor ou a boa vizinhança. E nenhuma parte da compra do presunto que comi foi motivada pelo carinho por aquele caminhoneiro – ou, na verdade, por qualquer outra pessoa envolvida no fornecimento daquele presunto. Do início ao fim, a motivação e a informação vieram na forma de preços, salários, lucros e perdas registradas em termos monetários. Todas estas trocas eram puramente “económicas”. A principal motivação é o ganho material, e todo o processo é guiado por cálculos monetários racionais. Quase nenhum papel foi desempenhado por sentimentos pessoais e calorosos.

Tudo verdade. No entanto, descrever o capitalismo – ou, pelo menos, a sociedade capitalista – como sem alma é enganoso.

Em primeiro lugar, o capitalismo não nos impede de exercitar e experimentar o sentimento de solidariedade. Nós, cidadãos da economia global do século XXI, temos tantas oportunidades de nos conectarmos pessoalmente com outros seres humanos como tiveram os nossos antepassados ​​no Pleistoceno e aqueles nas pitorescas aldeias da Nova Inglaterra do Século XVIII. E, claro, muitos de nós fazemos isso. Amamos nossos pais, irmãos, filhos e netos. Somos membros de igrejas. Nós nos importamos com nossos vizinhos. Confortamos nossos amigos quando eles estão deprimidos e somos consolados por eles quando a sorte se inverte. Se alguns de nós hoje escolhem viver vidas mais isoladas e sozinhas – uma opção reconhecidamente facilitada pelas riquezas capitalistas – isso não é culpa do capitalismo. Se a culpa deve ser atribuída, cabe aos indivíduos que escolhem essa opção.

No entanto, mais uma vez, a maioria de nós não escolhe viver como átomos isolados. Suspeito que o residente típico de Manhattan, Miami ou Manchester tenha hoje tantas ligações pessoais e calorosas com outros indivíduos de carne e osso como tinha o residente típico de 500 anos atrás de qualquer aldeia medieval.

Mas a acusação de que o capitalismo é “sem alma” é falha num segundo aspecto e ainda mais profundo. O que o habitante da modernidade tem e que faltava ao seu ancestral medieval são conexões muito reais também com inúmeros outros seres humanos. No atual sistema global de cooperação social, milhares de milhões de indivíduos são todos os dias incitados e orientados a trabalhar para o melhoramento uns dos outros. Ainda temos as conexões pessoais das quais extraímos calor. Mas também temos extensas ligações de mercado com inúmeros estranhos que permitem que vastas camadas da humanidade se ajudem mutuamente como se cada um de nós amasse e fosse amado por milhares de milhões de estranhos de diversas origens e crenças.

Motivados, de fato, não pelo amor, mas pelo interesse próprio – e guiados não pelo conhecimento pessoal, mas por sinais impessoais do mercado – os mercados capitalistas são impessoais. E admito que eles parecem frios e sem alma quando comparados às conexões cara a cara que temos com entes queridos, vizinhos e comerciantes familiares em cidades pequenas. Mas certamente, quando comparados com a pobreza mortal que experimentaríamos se tivéssemos ligações econômicas apenas com pessoas que conhecemos de rosto e nome, os mercados capitalistas deveriam ser aplaudidos pela sua humanidade. Descrever como “sem alma” um sistema que encoraja e permite que inúmeros estranhos cooperem de forma pacífica e produtiva para o benefício uns dos outros transmite certamente uma impressão totalmente falsa.

O capitalismo é impessoal. Não é sem alma.


Donald J. Boudreaux é pesquisador associado sênior do Instituto Americano de Pesquisa Econômica e afiliado ao Programa FA Hayek de Estudos Avançados em Filosofia, Política e Economia do Mercatus Center da George Mason University; um membro do conselho do Mercatus Center; e professor de economia e ex-chefe do departamento de economia da George Mason University. Ele é o autor dos livros The Essential Hayek, Globalization , Hypocrites and Half-Wits , e seus artigos aparecem em publicações como Wall Street Journal, New York Times , US News & World Report, bem como em vários periódicos acadêmicos.

Fonte: AIER – American Institute for Economic Research

Que 2024 seja de protagonismo!

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Enquanto adentramos 2024, muitos de nós almejam um horizonte repleto de sonhos e realizações. É comum depositarmos nossas expectativas no destino, esquecendo-nos do poder intrínseco que habita dentro de cada um de nós. Ser protagonista não se restringe apenas a ter desejos, mas sim a assumir o leme da própria vida.

Frequentemente, o início do ano nos lembra da importância de sonhar, mas é crucial entender que a realização desses sonhos está em nossas mãos. O protagonista não espera passivamente que terceiros desenhem seu destino; ele é o artífice do próprio caminho, o condutor das próprias conquistas.

Além de agir assertivamente para concretizar seus objetivos, ser protagonista da própria vida implica assumir o controle, ser o arquiteto do próprio destino e influenciar não apenas o presente, mas também o futuro. É uma jornada de autodescoberta, autoconfiança e ação direcionada, capaz de influenciar não só a própria trajetória, mas também o entorno.

Neste sentido sugerimos alguns passos para fortalecer o seu protagonismo e fazer deste ano algo extraordinário:

Autoconhecimento: identifique seus valores, crenças e paixões. Reconheça suas forças, fraquezas e áreas de desenvolvimento, Conhecer-se profundamente é o primeiro passo para assumir o controle.

Planejamento: estabeleça metas claras e mensuráveis para diferentes áreas da sua vida (profissional, pessoal, saúde, etc.). Desenvolva um plano detalhado com passos realistas para atingir cada meta. Revise e ajuste seu plano conforme necessário ao longo do tempo.

Ação consistente: comprometa-se a agir diariamente em direção às suas metas, mesmo que sejam pequenos passos. Cultive hábitos que o aproximem do que deseja alcançar, mantendo o foco e a disciplina para seguir seu plano, adaptando-se às circunstâncias quando necessário.

Resiliência e adaptabilidade: desenvolva a habilidade de lidar com desafios e contratempos. Esteja aberto a mudanças e novas abordagens para alcançar seus objetivos para aprender com os momentos difíceis e use essas experiências como oportunidades de crescimento.

Aprendizado contínuo: busque constantemente novos conhecimentos e habilidades. Invista em cursos, leituras, mentorias ou experiências que ampliem sua bagagem pessoal e profissional. Esteja aberto a aprender com os outros e com as situações do dia a dia, sempre em busca de evolução constante.

Ao explorar esses pilares do protagonismo, você não apenas moldará o seu próprio caminho, mas também influenciará a qualidade da sua vida.

Quando nos tornamos protagonistas da nossa existência, abrimos as portas para a prosperidade em todos os sentidos. A vida plena se revela quando estamos alinhados com nossos valores, quando desfrutamos da paz que vem do autoentendimento e da serenidade nas escolhas. A liberdade, por sua vez, surge da capacidade de agir com autonomia, adaptando-se às mudanças e transformando desafios em oportunidades.

O compromisso com o protagonismo não deve apenas preencher seus dias de realizações, mas também enriquecer a sua jornada, permitindo que a vida se torne mais significativa e próspera, não apenas para você, mas para todos ao seu redor.

Cada um dos 366 dias deste ano é uma página pronta para ser preenchida com as escolhas que fazemos. Tais escolhas requerem responsabilidade e ser protagonista é uma escolha, afinal nossas decisões podem ecoar para além do presente, moldando não apenas o futuro próximo, mas também o nosso legado.

Então, que 2024 seja um ano em que o protagonismo pessoal seja a chave para viver com plenitude, paz, liberdade e prosperidade em todas as esferas da sua existência!

IoP

Ninguém deve nada a você

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Minha querida filha:

Todo Natal eu passo pelo mesmo problema de ter de escolher que presente dar a você.  Sei que há várias coisas das quais você certamente iria gostar, como livros, jogos, roupas etc.  Porém, eu sou muito egoísta.  Sempre quis dar a você algo que iria durar mais do que alguns meses ou anos.  Sempre quis dar para você um presente que lhe faria se lembrar de mim a cada Natal, para sempre.

Se eu pudesse lhe dar apenas um presente, o qual você pudesse carregar consigo para sempre, esse presente seria algo aparentemente muito trivial, mas que me tomou vários anos para que eu finalmente o entendesse.  Esse presente seria uma verdade aparentemente simples, porém libertadora.  E se você aprendê-la agora, essa simples verdade poderá enriquecer sua vida de incontáveis maneiras.  Mais ainda: ela poderá lhe poupar de ter de enfrentar vários problemas que já machucaram muitas pessoas que simplesmente nunca a aprenderam.

Essa verdade aparentemente simples, porém libertadora, é a seguinte:

Ninguém deve nada a você.

Importância

Como pode uma afirmação tão simples ser importante?  Pode não parecer, mas entendê-la realmente pode ser uma bênção para toda a sua vida.

Ninguém deve nada a você.

Isso significa que nenhuma outra pessoa está vivendo para você, minha filha.  Ninguém está nesse mundo para satisfazer suas reivindicações.  Ninguém está vivendo em função de você.  Simplesmente porque nenhuma outra pessoa é você.  Cada pessoa vive por si própria; a felicidade de cada pessoa é algo único e particular, algo que somente ela pode sentir e ninguém mais.

Minha filha, quando você entender que ninguém tem a obrigação de dar a você a felicidade ou qualquer outra coisa, você será libertada e nunca mais terá expectativas em relação a coisas que provavelmente nunca serão como você quer.

Isso significa, por exemplo, que ninguém é obrigado a amar você.  Se alguém a ama, é porque existe algo de especial em você que dá felicidade a essa pessoa.  Descubra o que é essa coisa de especial que você tem e se esforce para amplificá-la.  Assim você será ainda mais amada.

Quando as pessoas fazem algo por você, é simplesmente porque elas querem — porque você, de alguma forma, propicia a elas algo de significativo que faz com que elas queiram agradar você.  Elas não agem assim somente porque devem algo a você.

Ninguém deve nada a você.

Da mesma forma, ninguém tem de gostar de você.  Se seus amigos querem estar perto de você, não é porque eles se sentem nessa obrigação; é simplesmente porque eles se sentem bem estando com você.  Descubra o que os deixa felizes e os faz se sentirem bem, e eles sempre irão querer estar perto de você, sem pedir nada em troca.

Ninguém tem a obrigação de respeitar você.  Algumas pessoas podem até mesmo ser cruéis com você.  Porém, tão logo você entenda que as pessoas não têm a obrigação de ser bondosas com você — e que, consequentemente, elas de fato podem ser más com você –, você irá aprender a evitar aquelas pessoas que podem lhe ser nocivas.  Lembre-se de que você também não deve nada a elas.

Vivendo a sua vida

Ninguém deve nada a você.

Você deve apenas a você mesma a obrigação de ser a melhor pessoa possível.  Porque apenas se você for assim é que as outras pessoas irão querer estar com você e irão querer dar a você as coisas que você quer em troca daquilo que você está dando a elas.  Essa é a única maneira moralmente correta de se obter as coisas que você quer.  Nunca exija nada de ninguém.  Apenas faça por merecer.

Algumas pessoas irão optar por se afastar de você por motivos que nada têm a ver com você.  Quando isso acontecer, procure em outro lugar as relações que você quer.  Não faça com que os problemas de outras pessoas sejam também o seu problema.

Assim que você aprender que precisa fazer por merecer o amor e o respeito dos outros, você jamais irá esperar coisas impossíveis; e, por conseguinte, jamais terá decepções.  Da mesma forma que as outras pessoas não têm a obrigação de compartilhar a propriedade delas com você, elas também não têm a obrigação de lhe devotar sentimentos e pensamentos.

Se elas o fizerem, é porque você fez por merecer essas coisas.  E aí você terá todos os motivos para se sentir orgulhosa do amor que você recebe, do respeito dos seus amigos, da propriedade que você adquiriu.  Porém, jamais pressuponha que tais coisas são fatos consumados.  Se agir assim, você irá perdê-las facilmente.  Essas coisas não são suas por direito.  Não existe algo como “ter direito” a essas coisas.  Você sempre terá de fazer por merecê-las.

Minha experiência

Um grande fardo foi retirado dos meus ombros no dia em que finalmente entendi que o mundo não devia nada a mim.  Por muitos anos acreditei que havia coisas a que eu tinha direito pelo simples fato de ter nascido.  E isso fez com que eu passasse por grandes desgastes — físicos e emocionais — em minha tentativa de coletar esses “direitos”.

Ninguém deve a mim respeito, amizade, amor, cortesia, conduta moral ou inteligência.  O mundo não me deve nada.  E tão logo eu passei a reconhecer isso, todas as minhas relações imediatamente se tornaram muito mais gratificantes.  Concentrei-me apenas em estar com aquelas pessoas que queriam fazer as coisas que eu queria que elas fizessem.

Essa compreensão de mundo permitiu que eu me desse bem com amigos, sócios comerciais, clientes, amores e estranhos.  Sou constantemente relembrado de que só irei conseguir o que quero se puder entrar no mundo da outra pessoa.  Eu tenho de entender como ela pensa, o que ela crê ser importante e o que ela quer.  Somente assim eu poderei ser útil para ela e, com isso, conseguir as coisas que eu quero.

E somente então eu serei capaz de discernir se eu realmente quero estar envolvido com tal pessoa.  Isso me permite selecionar bem as minhas relações, poupando-me de dissabores; e me permite também direcionar minhas energias apenas para aquelas pessoas com as quais eu realmente tenho mais coisas em comum.

Não é fácil resumir em poucas palavras aquilo que levei anos para aprender.  Porém, talvez se você reler esse presente a cada Natal, seu significado ficará mais claro a cada ano.

Eu realmente espero que isso aconteça.  Sendo seu pai, quero acima de tudo que você entenda essa simples verdade, a qual pode libertá-la para sempre.

Um Feliz Natal, minha filha!


*Artigo originalmente publicado em 23 de dezembro de 2014.

Harry Browne, o falecido autor de “Por que o Governo Não Funciona” e de vários outros livros, foi candidato à presidência dos EUA pelo Partido Libertário.

Fonte: Mises Brasil